quarta-feira, 10 de outubro de 2007

A vida quer passar

Diz-se que, quanto mais tempo preenchido, mais tempo preenche nossos dias. É como um ciclo vicioso incessante aos maníacos por tempo preenchido, aos que depressivos quando do ócio. Preguiça entra em nosso vocabulário quando paramos e... não tenho o que fazer! é o que pensamos. Então o corpo amolece como naqueles dias abafados de cidades úmidas e, enfim, nos damos, não porque queremos, minutos de descanso. Mas o tique-taque do relógio é incansável, o tempo não pára e nós, os non-stop, sabemos disso.

É bom ter feitos diários. É bom não ter intervalo de acesso, entre pensamentos úteis, para os pensamentos fúteis. É bom aproveitar dias, horas, minutos, segundos!, porque 'vai que não dá tempo pra fazer tudo!'. A vida é quase invisível aos olhos, tão rápido passa. Os segundos, afinal, foram feitos para serem sugados até o fim, ingeridos com vontade, mas a conta-gotas, para que demorem a cessar.

A pressa de viver é quase uma doença. As vítimas dessa obsessão têm o relógio como o principal inimigo da vida. Parece-lhes que, para viver, deve-se correr contra o tempo. O ideal seria quebrar todos os relógios e esquecer que as rugas estão se formando não tão lentamente, que as pernas um dia não suportarão caminhadas longas, que as pessoas não ficarão pra sempre, que temos fim. Infelizmente, esses são os pensamentos que recheiam aqueles raros momentos de ócio.

A vida quer passar e tentamos inutilmente bloquear seu caminho. Esticamos um pouco aqui, outro acolá. Dormimos hoje dez minutos mais tarde, já que dez minutos rendem mais dez palavras bonitas, mais cinco páginas daquele livro, mais dois assuntos entre amigos... mais um momento. Vivemos essa vida, já que a próxima é dúvida, e a eternidade, uma tentativa vã.


De Clarisse Lispector:

Eu sou antes, eu sou sempre, eu sou nunca. À duração da minha existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Eu nasci na época errada

Apercebi-me do erro épico cometido pelo destino quando ouvia, em certa exposição histórica, certo balaio de músicas e notícias anos 60-70. Ouvia aquilo com sorriso de criança, com o ar de alguém cuja felicidade foi encontrada no mais suposto disparate. Alguém que descobriu que esteve sempre no lugar errado, e enfim encontrou seu lugar. Mas tão logo minha alegria infantil se transformou num saudosismo senil. Voltei a minha época física quando, com dificuldade, levantei daquela cadeira cujo desenho arremetia a minha então descoberta época espiritual. Tudo e todos me pareceram demasiado incomuns, demasiado atuais.

Ouvindo vozes roucas e suaves, transportei-me por alguns instantes à vida universitária de meus pais, quando pensava-se duas vezes (até três) no que deixaria de ser apenas pensamento para ser fala. Os estudantes gritavam e cantavam para criticar. Os ídolos eram Chico Buarque e Beatles, e não... deixa pra lá. Eu queria, por alguns instantes mais, ouvir os reis do iê-iê-iê e, ali mesmo mexer os pés e os ombros como fazem meus pais e como nós, que não vivemos Beatles, achamos ridículo. Por muito pouco, não me deixei levar pelas músicas de protesto e não saí gritando "diretas já" no meio daquela gente.

Eu acredito em outras vidas, talvez acredite porque queira crer que vivi o que nessa vida não vivi. Ainda não sei onde nem quando passei meus anos de glória, se em 20, 30, 40, se dancei o Charleston ou a dança dos meus pais. Eu queria, também, ter sido hippie e ter-me vestido à paz-e-amor, embora o “amor livre” e a marijuana não me seduzam. Os mais variados trechos da história me aliciam insistentemente. Talvez tenha vivido todos. Talvez deva fazer regressão.

Se minha alma não se apossou de outros corpos, nasci na época errada. Vivo como se tivesse assistido às partidas de Pelé e à viagem de Gagarin. Eu vejo e ouço como uma conservadora. Eu rejeito valores e a moda séculovinteum. Tenho espírito velho sob essa carcaça que insistiu em nascer na era dos computadores e do funk.