terça-feira, 27 de novembro de 2007

O dia em que voltei ao passado

Foi num domingo, como costumava ser há dez anos ou mais, mas também podia ser uma quarta. O lugar já não era a casa da vó em Santana – nem a pseudo-casa-da-vó na capital –, era mesmo um restaurante, uma dessas galeterias quaisquer, mas isso também não importava. A comida não era feita pelas genitoras faladeiras na cozinha apertada da minha casa, nem na da minha tia. Fingi não perceber esses detalhes.


O motivo era o aniversário de um tio, mas a maioria ignorava o fato – não se ouviram felicitações. Primos, tios e agregados. Daqui, de Santana, da Terra dos Esquecidos. Não foram todos - e isso fiz questão de perceber. Então (quase) todos foram prestigiar o solene e remoto momento que – não disseram, mas é certo – haviam extraído da memória: o encontro familiar.


Minha cabeça doía e pendia ora para um lado, ora para outro, em vias de ser desativada pelo sono. Mas aquele era um dia especial. Não era único, era melhor que único. Era uma lembrança boa que se concretizava em sorrisos outrora de Natais, Páscoas e almoços dominicais. Agora eram só sorrisos de saudade, de bom-te-ver.


Fingimos, por largas horas, que éramos o que fomos, embora soubéssemos que não éramos mais. Mas um disparate à toa não faz mal a famílias felizes. E assim, fomos crianças, irmãos, amigos novamente. A diferença é que sabíamos mais sobre computadores, filosofia, arquitetura. Sobre a vida, embora alguns tentassem fingir que não. Ninguém queria pensar em presente durante aquele passado bom.

Com a cabeça dorida, me conformei em descansar a fala. Só olhei e vi: de fato, não éramos os mesmos. Éramos mais do que fomos. Não menos por vermos pouco uns aos outros, não menos por nos abraçarmos pouco ou por não estarmos na casa da vó. Éramos mais. Mais saudade, mais afeto, mais família do que nunca.


segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Psicologia Espelhar

Eu disse “ai tiiio!”, e ele me fitou como se a pecadora fosse eu. Mas meu ato impulsivo de juntar o papelzinho devidamente compactado (para que a sujeira parecesse menor) não foi só pensando nos meus netos. Na verdade, creio que sequer pensei. Só fiz. Porque, combinemos, não há que pensar diante de um papel voador cujo destino não é a lata verde. Há que agir!

Passada minha vontade de dizer barbaridades ao grosso vovô careca, então, sim, eu pensei. Pensei na desfaçatez humana sob aquela figura a quem palavra “respeito” – sem falar em “lixeira” – parece inexistir. Reconhecem-se as pessoas pela origem de seu lixo. Traduz-se “lixo no chão = desrespeito”. Sem falsa demagogia, carrego o meu até visar a lata. E garanto, não é difícil.


O tio me olhou de revesgueio até virar a esquina como se nada entendesse. Creio que não entendia (acreditem! algumas pessoas têm tremenda dificuldade de captar o óbvio). Talvez tenha esperado em vão que eu me rebaixasse ao nível do seu ato e gritasse um palavrão horroroso. Mas meu bom exemplo se estendeu até aí.

Até senti um breve orgulho de minha pessoa. Mas meu lado anjinho da consciência sussurrou que nada mais fiz que minha obrigação de gente consciente.

É simples. Funciona assim: respeite. Não dói.


A Caixa

Metódica, repete incansavelmente aquele velho ritual pré-sono. A garrafa metade vazia, metade cheia de água. O som toca o mesmo disco, cujas músicas foram sistematicamente colocadas uma após a outra num ritmo inversamente proporcional à sonolência. Os livros. A persiana baixa aos quatro dedos de tocar a janela. O despertador ligado para... quarenta e cinco minutos precedentes à saída. Vinte para estender o sono, vinte e cinco para os ritos matutinos.

Tudo em ordem.

O livro, periodicamente substituído sob a luz do abajur, é quase bíblico. Cerca de dez páginas por noite, às vezes mais. Depende do grau de assimilação. Comumente, na página cinco – às vezes antes – quando aquele mesmo disco toca aquele trecho da música que precisa ser cantada, os ouvidos monopolizam o setor sensorial e os olhos fogem às frases de Kafka, Márquez, Pessoa, ou seja lá o que esteja em suas mãos.

Os olhos inquietos então olham em torno enquanto a boca arrisca um inglês um tanto distinto ao que os ouvidos escutam. E, numa dessas peregrinações da visão, depara-se com o que as palavras que outrora lera lhe fizeram esquecer.

Ela está ali, em meio às semelhantes, e parece ter a ingenuidade de suas cores. Teria, não fossem as lágrimas que já causou, pensa.

Nunca lembra do que almoçou ou da última página que leu, mas se recorda como disponibilizou cada item naquele retângulo quase quadrado. Tudo deveria estar perfeito para ali não mais estar dias depois. E ali continua há meses. Sabe que dali só sairão para uma sacola preta levada semanalmente para longe.

Talvez fosse mais fácil se a quase quadrada não lhe parecesse tão útil. E tão bonita... Seria fácil fechar os olhos e manda-la junto a tudo na sacola preta.

Mas continua a olhar. Repetidamente, olhar. E, repetidamente, ela sabe que a dor de abri-la é maior que a de vê-la. Disseram-lhe, certa vez, que sofre mais quem o faz com vagar. Mas lhe teme a idéia de que tudo vá tão rápido como veio.

Pensa que melhor lhe convém deixar a caixa fechada, tudo fechado. Volta às cinco páginas. Dorme. Ela. A caixa.