segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

aPorto

E, de repente, bateu a saudade do meu porto, de onde a âncora frágil se soltou. Onde deixei abertos os olhos e os braços também meus. Senti o barco balançar mais forte no mar de escolhas, mesmo que ainda não haja o que seria tormenta. No caminho de volta, não mais que o tempo de reabastecer nesse único Porto seguro e Alegre meu. E voltar a navegar em sentido e sentindo incerto. Até que no depósito reste não mais que a saudade. E um dia volte a aportar.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

As reticências foram abertas

O mundo não poderia terminar amanhã. Tolice pensar que sim.

Porque, se o mundo terminasse amanhã, não haveria tempo para tirar da idéia a boa teoria dos poucos dias. Tudo que faria meu mundo ter mais sentido, e permitiria que ele amanhã terminasse. Num mudar de lua – ou simplesmente de rua – uma biografia de fatos ganhou páginas novas. Uma partitura de vida recebeu mais notas. Um depósito profundo de sentimentos foi aberto. E tudo é mais sentido do que jamais foi. De repente, a compreensão do idioma é outro. As palavras antes sem nexo dessa escrita disforme foram traduzidas e, embora devesse ser mais difícil compreendê-las, agora fluem com mais clareza. Com palavras e silêncio, aprendi que nem tudo precisa ser falado, ainda que tudo deva ser dito. Que tudo deve ser escutado, mais que ouvido. Que tudo muda quando se compreende tanto o calar como a canção. Onde antes era um só ponto, agora há mais. Agora há um espaço branco-colorido a ser preenchido com vida. E o que era um ensaio já é uma obra, com enredo em processo evolutivo. Ainda que fora do papel.

Uma perda, eu sei, se o mundo terminasse amanhã.


sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Paixão sobre Paixão

Minha paixão é essas linhas que escrevo. E a vantagem dessa minha paixão é poder traduzir a paixão alheia. Nada melhor. Por isso, tomei de pronto a primeira oportunidade para escrever sobre o tango do ponto de vista de uma apaixonada por uma das maiores paixões argentinas. Entenda-se bem: não apaixonada pelo tango, e sim pela paixão por.

Então escrevi essas linhas para a revista da universidade. Em espanhol, claro. Aqui, traduzido para um português talvez um pouco espanholado. As partes em primeira pessoa estavam em nome da revista. Mas, aqui, eu revelo que eu sou eu, já que todos já sabem. Há, ainda, um segundo texto, mais técnico e chato. Mas resolvi escrever, aqui, só o essencial.

Espero despertar o mesmo que sinto nos sentidos alheios.
..


Três minutos de paixão mundial

Argentina e Uruguai buscam o reconhecimento do tango pela UNESCO. Enquanto isso, milongueiros que não falam espanhol viajam muitas horas por poucos momentos com a dança.

Nascido como a denúncia social de uma época, o tango volta, depois de mais de um século de sua criação, a ser símbolo de expressão contestatária. Nos anos 40 a classe tangueira dos subúrbios de Buenos Aires brigava por fazer da sua arte reconhecida e agora, em 2008, Argentina e Uruguai deixam de lado divergências sobre suas origens e se unem para dar à dança um futuro de reconhecimento mundial. Porém, já não é?

Uma prova da força do tango em todo o mundo, além de qualquer título dado por órgãos mundiais, são os “milongueiros residentes em outros países”, estrangeiros que freqüentam cada dia mais o circuito de milongas da capital argentina.

Milonga: um só idioma.

Fui às milongas portenhas certa de encontrar a sensual dança praticada por seus tradicionais bailarinos: os argentinos. Na Confitería Ideal, uma das mais tradicionais da cidade, onde se dança desde a tarde até o final da noite, um cartaz diz: “Hoy milonga. Ya estamos milongueando”. No entanto, o idioma original do tango só é conservado para as boas-vindas. Todos os demais cartazes no lugar são bilingües. “Clases de tango, vals y milonga. English and italian spoken”.

Na porta de entrada, não demora que se veja gente enrolando a língua em outros idiomas com uma sacolinha na mão, um sinal de que aí está um tangueiro. Quando não carrega a sacola com os sapatos, o estrangeiro não é nada mais que um turista curioso que vai assistir à dança alheia. A argentina Julia Doynel, que organiza a milonga Sueño Porteño, explica: “O que acontece é o tango é uma língua. Na milonga, falamos todos de igual forma”.

O idioma comum parece muito fácil: o abraço. Todos, argentinos ou estrangeiros, são unânimes em dizer que a essência do tango é esta. Ainda que, nas suas origens, era condenado pela população justamente por este excesso de contato físico, é essa a maior razão pela qual se viaja muitas horas para chegar à capital argentina. Quando lhes pergunto sobre o que pensam do tango que mais atrai os turistas, o “tango de cenário”, visto nas ruas e restaurantes, não há divergências. Todos acham lindo, mas sem a tal essência. Além de que este não podem dançar. Nesse tango ensaiado, o contato físico está em segundo plano. “É o que chamamos tango import-export, e só jovens podem praticá-lo”, diz uma francesa aposentada que dança há 10 anos e fica durante sete meses do ano em Buenos Aires.

Ainda que seja fácil compreende-lo, a prática do abraço é complexa para qualquer pessoa que a tente. Julia garante que o bom dançarino estrangeiro dança melhor que um argentino, já que estes acreditam que já nascem sabendo e não costumam fazer aulas. Juan Carlos La Falce, que dirige a milonga El Nuevo Salón La Argentina há nove anos, avalia que os franceses e os suíços são os melhores. Mas a francesa aposentada enfatiza que o melhor elogio que já recebeu foi, justamente, quando lhe disseram que dançava como uma argentina. “Quer dizer que tenho a paixão”, conta.

Paixão. É isso que move os milongueiros de qualquer nacionalidade. No salão, onde os casais dançam numa roda que segue o sentido anti-horário, não existe uma velocidade, uma lógica. Cada par dança no ritmo do coração. “O tango se dança como se sente, não existe coreografia”, explica Susana Vidal, argentina que frequenta com o marido, o jornalista Armando Vidal, o salão de La Falce e também da aulas de tango.

Procurei aqueles os quais sei acostumados à dita paixão pela música e pela dança. Nas milongas, os brasileiros parecem tão entregues a esse amor como ao carnaval carioca. “O tango tem mais sensibilidade, já o samba é mais ritmo e improviso. Além disso, a comunicação entre duas pessoas é única do tango”, confessa Arlene Pinheiro, dona de uma escola de dança em Belo Horizonte, no Brasil. A amiga que a acompanhava na milonga, a terapeuta Sonia Falco, diz com conhecimento: “o tango é uma verdadeira terapia”.

Seja na improvisação ou na cuidadosamente ensaiada coreografia, cada casal cria seu próprio código de comunicação. Rocky, que quase não fala espanhol, mas compreende bem a linguagem de uma milonga, não conta o nome verdadeiro e a idade. Na milonga El Nuevo Salón La Argentina, somente se sabe que o louro misterioso de meia idade é americano. Se apaixonou pelo tango há cerca de quatro anos e, desde então, sempre que pode foge da cultura do masculina do futebol americano e do basquete. Prefere dançar a ficar olhando um tango show, que é, para ele, uma fantasia. “E a mulher fica longe, o que não me parece nada bom”, revela.

Outra crítica de quem vive o tradicional tango é que o “de cenário” se entregou à alegria. O “tango al piso”, como é chamada a dança das milongas, conserva a tristeza, ainda que o clima nesses lugares pareça muito bom. “Buenas energías”, é o que todos respondem. Por isso, por mais que os pontos turísticos portenhos, que atraem diariamente centenas de turistas, ofereçam boas vistas, é aqui que muita gente quer ficar.

É o caso da suíça Monica Ferster, que aprendeu tango há dez anos no seu país. A intimidade com a dança já é tanta que não parece a primeira vez que vem a Buenos Aires. Veio para dançar e não conhece mais nada da cidade além das milongas, como a da tradicional Confitería Ideal, onde fala muito rápido comigo porque logo tem um compromisso muito importante: outra milonga.

“O tango é três minutos de paixão”, é a explicação de Carlos La Falce para as tantas visitas apaixonadas que recebe de estrangeiros em seu estabelecimento. Minutos nos quais se fecham os olhos, se abraça e se sente o outro. “Não, isso não existe no tango de cenário”, protesta o defensor de que esta arte seja multiétnica, mas que não acredita que o reconhecimento da ONU mudará o status das milongas, e sim somente o lado turístico da dança. No entanto, quem como ele soma diariamente esses três minutos, sabe que de nada mais precisa.

sábado, 1 de novembro de 2008

Mudei.

Assim, com ponto final. Não que não mereça reticências. Porque é sempre bom deixar em aberto quando se trata de mudanças. Mas, por enquanto, é mudei e ponto.

Mudei não porque quis. Tenho certa dificuldade em tomar decisões. Mudei porque me empurraram para fora, pela porta da frente, e disseram: vai! E eu fui. Meio contrariada, em princípio, eu fui só porque tinha que ir.

Aos poucos, as idéias amadureceram e, como tal, mudaram de cor. Pareceu-me boa a idéia de viver outros ares, a de ser noutro lugar. A mudança, então, tornou-se dúbia. Triste - muito triste - mas feliz. Se é que isso se entende.

Depois de três meses dividindo caras amassadas pela manhã, compartilhando manias e aprendendo soluções, mudei para começar de novo. Outra vida, embora eu só esteja a dois bairros de distância. E a mudança tenha custado quinze pesos, algumas horas de arrumação e poucas lágrimas.

Mudei. Agora sou mais típica e mais próxima. E, quem sabe, isso abra espaço a reticências.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Deliciosos Retratos

Adoro os cafés. E, de fato, não há algo em maior quantidade nessa cidade (finjamos, agora, que não há lixo nas calçadas). Não os cafés de beber, mas os de estar e de ver.

Sento-me em um, no qual descobri dois grandes prazeres. O primeiro, paezinhos de espinafre (aqui, consideremos os prazeres de uma vegetariana). O segundo, uma vitrine.

Em frente a uma grande janela eu olho para a rua. Seguindo a lógica da perspectiva, o objeto em exposição seria eu. Mas não. São eles. Porque eu observo. Eles são só eles caminhando na calçada.

Passam muitos perfis e alguns rostos de frente (e pensemos que eles seguem a lógica do objeto em exposição).

Passa um alemão que guarda a mão no bolso peitoral. Passa uma brasileira que fala sozinha ou talvez cante uma canção. Passa um gordo que bebe numa garrafa inversamente proporcional a si. Passa, passa, passa.

Como o tempo, passam rápido e não me dão tempo.

Jovens de branco com pinta de medicina. Um senhor de branco pintado de tinta. Passam tortos e direitos (porque os vejo de lado). Passam ritmos silenciosos e silêncios misteriosos.

Passam brabos, alegres, apáticos. Curiosos da minha vitrine.

Todos sonorizados pela música e pelas vozes daqui de dentro. E deliciados como café. Ou, melhor, como pães de espinafre.

domingo, 19 de outubro de 2008

Embaixadoras

Tenemos un mundo. Eu diria a elas. Embora elas já saibam, e eu não precisasse dizer. Mas seria bom dizer-lhes que sim, que somos um mundo. E eu diria em espanhol porque, já que o somos, cada uma fala seu idioma. Em muitos sentidos. O que nos une é a tentativa e o interesse. A tentativa de falar. O interesse em ouvir.

Somos mexicanas, canadenses, alemãs. Somos três vezes brasileiras. Falamos francês, alemão, português. A unidade espanhol e o salvador inglês. Falamos o que em qualquer país não seria entendido. O que, após três meses, só aqui se fala.

Somos porque somos. Agora somos todas tudo. E nós, quando tudo aqui cessar, continuaremos multiétnicas. E poliglotas. Sentiremos falta da guacamole como nosso prato típico. Sentirão falta da feijoada. Sentiremos saudade.

Temos mais diferenças que uma língua e uma cultura. Temos mais semelhanças que a busca incansável que nos uniu aqui. Temos, talvez, um sonho insano para um futuro incerto. E, algumas, uma carta na manga para realizá-lo.

Mas eu diria, por enquanto, que o que temos já é o bastante.

Afinal, em qualquer lugar onde estivéssemos, eu diria o mesmo a elas.

domingo, 5 de outubro de 2008

Sonidos Subterráneos

Bip-bip-biiip

Bip-bip-biiip

As catracas rodam incansáveis e os corpos correm incontroláveis.

Milhares de corpos. Milhares de pés. Milhares de mãos que passam os cartões de acesso ao mundo subterrâneo da cidade. Milhares de bip-bip-bip por dia.

Milhares de sons.

As linhas de metrô da cidade, que na literalidade argentina é chamado Subte, são a reprodução subterrânea da cidade dos contrastes de cores, de gente, de poesia. De barulho. Dos sons fugazes das bocas, dos gritos que tentam superar o som esgaçante dos trilhos do trem.

Mas as linhas coloridas de letras do alfabeto também escrevem composições com mais musicalidade. O subte tem trilha sonora. Os túneis são roteiros abstratos sonorizados por música clássica, rap, andina. Qualquer ritmo em versão argentina.

Nos corredores que ligam estações, os fones saem das orelhas para ouvir a milésima sinfonia do subte. Mais que o respeito, como um chapéu que sai da cabeça, é a admiração a quem dá vida às passagens frias e segundos de sensibilidade aos ouvidos apressados. Os vinte e poucos anos de homens e mulheres carregam violinos, violões e rostos de prazer, embora o palco seja baixo e escuro; o público e o salário, incertos.

Os corpos, quando novamente irracionais – ou racionais? – se esmagam para encontrar vago o assento onde farão viagem.

Dentro do vagão, violão e voz desafinados incomodam e aconchegam. Distraem a monotonia. Para as vidas desafinadas, qualquer nota no compasso certo é boa melodia.

Numa estação, o trem pára e fica. Aguarda mais tempo que o combinado, aproveitando a música que silencia o lugar. Um careca toca guitarra e canta “Stand by Me”, enquanto os olhos esperam, esquecidos da pressa. Dentro e fora do trem, há um público fiel nos poucos segundos dessa união de interesses.

O alarme soa alto e apressa quem sobrou. As portas prestes a fechar desesperam.

Ao pé da escada, como recepção a quem chega, “More than Words” traduz o que ele sente. Assim como os demais que vivem para musicalizar a vida passageira, é mais que palavras que o jovem atirado com o violão quer dizer. Está ali, assim como tantos, com uma tarefa difícil em meio ao caos sonoro.

Ali, a tarefa é mais que o cantar. É o encantar das vidas monótonas, o sensibilizar das vidas mecânicas. Das máquinas que vão e vêm nos imutáveis trilhos do trem.


***

O subte portenho é infinita fonte de observação e inspiração. Logo, promete ser assunto constante para divagação.


terça-feira, 23 de setembro de 2008

Contos de Primavera

Há alguns anos, quando eu não imaginava que existia algo além de uma terra longínqua chamada Porto Alegre, eu acreditava que flores caiam do céu. Assim mesmo. Flores pequeninas, bonitas como gérberas e rosas, caíam girando como uma roda de carroça a partir do dia 21 de setembro. Vinha daí meu encanto pela primavera.

Se me perguntassem minha estação preferida, eu não balbuciava. Não pensava nos ventos fortes, na chuva, no resquícios de frio dos setembros. Só pensava nas flores que cairiam sem parar.

Não sei por que, por tanto tempo, em acreditei nisso. Afinal, ano após ano, setembro após setembro, via tantas flores como neve caírem na minha cabeça naquele país tropical.

Quiçá uma analogia inconsciente ao despertar da vida, à renovação dos ares. Quiçá inocência. Qualquer hipótese que fosse, a perdi. Mas não quando percebi que as flores não caiam, e sim quando descobri em quão feia algumas pessoas transformaram minha ilusão.

Quando descobri que existia Buenos Aires, pensei que minhas constatações infantis estavam certas. Aqui, a entrada da primavera coincide com o Dia do Estudante e é uma data celebrada. Era o dia mais esperado por mim desde que cheguei, porque muitos bonaerenses entraram num acordo cruel e me narraram como são lindas as primeiras horas da estação nos parques da cidade. As pessoas dão flores às outras e sorriem. Os estudantes se reúnem e festejam esse dia em que são liberados das aulas. Foi assim que me iludiram.

De fato se reúnem. Mas para transformar primavera em inverno (ou inferno). Nos belos bosques de Palermo se vê muita gente, que abre as mãos para soltar lixo, e não para dar flores. Os jovens não sorriem, mas riem. Riem uns dos outros. Gritam. Correm.

E as flores, definitivamente, não caem do céu.

A primavera aqui é feia.

******

Quando tento antecipar a entrada da primavera, ainda carregando minha ilusão, e me sento no Jardim Botânico da cidade, um moço se dirige a mim. Estende na minha frente um longo pedaço de arame e começa a enroscar. Cara de argentino não tem. O arame lhe denuncia.

Hola. Voy a hacerte una estrella porque las estrellas tienen luz propia — entrega-me o arame que se esforça em parecer uma estrela. — Y ahora te mostro mi trabajo y então si te gustar alguno te cuento un cuento.

O sotaque e os erros também. Sim, é brasileiro. Brasileiro que enrosca arame, faz-los brincos e vende. Esse, ainda encena e narra um conto se eu comprar sua arte.

Quero ouvi-lo.

Agora, ao contrário de antes, é o português que tropeça no espanhol. Estou mais atenta à forma da fala que ao conteúdo. E fala como um brasileiro que entorta arame na beira da praia.

Uma terra onde duendes e fadas fazem festas nas quais tudo é mais ou menos a trindade sexo, drogas e rock’n’roll. Então, um urso aparece — porque, afinal, ursos têm relações profundas com fadas – e lhes faz chá de cogumelos. Nessas comemorações não só pela primavera, as fadas se portam muito mal. E, embora isso tudo seja tão metafórico quanto as flores que caem do céu, fez mal às minhas ilusões primaveris.

— Agora você tem que me prometer uma coisa — diz o carioca. — que vai se portar muito mal. Mas isso, só se for pra passar bem.

Hã?

Óquei. É melhor concordar antes que meu saco de ilusões se esvazie por completo.

******

A primavera aqui é feia. E desilude.

E, para contrariar Quintana, nada disso tem-me causado uma extraordinária sensação de alívio.

sábado, 30 de agosto de 2008

“Saudade é um clichê”...

... eu disse pro Samir.

Assim, me dei conta de que não escrevo porque meus pensamentos são agora clichês. Porque tudo o que penso é saudade.

O Samir contestou que não. Que saudade é sentimento. Sentimento clichê, porque todo mundo tem, afinal. Coisa clichê é coisa que todo mundo tem, que todo mundo sente, que todo mundo diz.

Bom, ao menos falantes losófonos são clichês, os únicos que sentem saudade nessa superfície tão grande e tão propensa ao sentimento. Os outros sentem falta, eu disse. O que nem de perto é o mesmo.

“E tu, sente o quê?”. Eu sinto saudade. Saudade grande, daquela bem brasileira. Porque, embora eu já confunda um pouco as língua ibéricas, em espanhol palavra nenhuma consegue traduzir o que sinto.

E, sim. Pra que tudo faça sentido, esse texto é clichê. Afinal, eu sinto saudade.


... e foi assim:

Luana diz:
só penso clichês ultimamente

Luana diz:
q coisa horrível

Luana diz:
o q eu faço?

Samir diz:
ai luana, tbm não há drama

Samir diz:
a vida nao deixa de ser um grande clichê

Luana diz:
não é drama

Luana diz:
é q to pensando em como começar a matéria

Luana diz:
só penso clichês

Luana diz:
não atualizo o blog pq só penso clichês

Luana diz:
acho q é a saudade d casa

Luana diz:
saudade é clichê

Samir diz:
ahahaha

Samir diz:
saudade é sentimento

Luana diz:
sentimento clichê

Luana diz:
pq todo mundo tem

Luana diz:
e isso dá texto

Samir diz:
mas só brasileiro sabe falar direito!

Luana diz:
só brasileiro sente saudade

Samir diz:
ohhh

Samir diz:
q amor

Luana diz:
é... falta e saudade não é a mesma coisa

Samir diz:
nao mesmo

Samir diz:
tu sente o que?

Luana diz:
saudade, ué

Luana diz:
sou brasileira

Luana diz:
embora já confunda um pouco o português com o espanhol

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Amanhecendo em Buenos Aires

O sol apareceu, embora eu só o tenha visto horas depois.

Quando desembarco na rua pela porta bordô da Calle Constitución, os pés parecem tocar num oceano gélido e o corpo adentra aquilo que se sabe ser dia, mas que ainda não amanheceu. São sete da manhã. E me vou melancólida, fria e com frio.

Quando enfim amanheceu, e meu corpo estava dentro de salas aquecidas artificialmente da Universidade, o sol pôs-se lá fora. Descobri que não era forte concorrente ao frio do inverno, mas, embora não aquecesse tanto o corpo, esquentou surpreendentemente a alma. Porque o sol tem dessas coisas, me parece. Um incrível sei-lá-o-quê que merece odes e devoções.

Durante, pelo menos, 16 dias, o sol deve ter somado não mais que ligeiras horas de exibição. E eu, contrariando a lógica de quem faz as escolhas que fiz, somei não mais que alguns poucos minutos de exaltação. Aquela vontade talvez se tenha misturado à saudade e ao medo e me senti, por 16 dias, um dia fechado. Sem sol.

Quando senti sob o pé a superfície mais quente e o dia passou a ser, enfim, dia, comecei a recuperar o fôlego. Começar já é um bom começo, afinal. A respiração se aquietou enquanto o corpo fez o exato inverso, embora eu tenha demorado a perceber.

O relógio biológico desajustado me fez ficar em casa no primeiro sol da minha nova vida. Mas aqui dentro está tudo bem. Tenho sol na minha janela e parece estar tudo mais claro.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Pequeno Tributo à Esperança

Hoje o dia nasceu mais triste pra mim. Peço desculpas àqueles que há tempos me pedem novos escritos e esperam notícias de uma aventura em terras portenhas. Mas eu hoje acordei triste.

Há anos quase incontáveis, quando Buenos Aires sequer pensava em acolher-me, nasceu Esperança. Com ela, também nasceram admiradores. Novas vidas que brotaram a partir de novos pensamentos. Uma perfeita mistura de idéias revolucionárias e sentimentos conservadores. Porque Esperança era, até a manhã de hoje, sinônimo de vanguarda, de alegria e de brilhantismo. Quem conheceu Esperança Keil Fuentefria, há-de sempre recordar qualidades.

Mesmo com as adversidades da vida – que lhe foram muitas – não perdeu a alegria e a claridade da mente. Até a última semana de vida (quando a vi pela última vez) bem sabia o que queria e o que dizia, embora estivesse com o corpo magro ainda mais magro, e os olhos claros talvez mais cansados de viver. Não gostava de “gente velha”, e talvez isso lhe tenha salvado de envelhecer. Porque Esperança nunca foi velha, a despeito de seus cem anos.

Meu dia amanheceu triste porque descobri que não mais a farei feliz com o cartão postal que lhe enviaria, para lembrar-lhe das ruas portenhas de que tanto gostava. Fiquei triste porque não ouvirei suas incansáveis histórias e seus agradecimentos quase chorosos às visitas que recebia. Chorei por descobrir, assim por um baque, que as coisas boas não são eternas.

Ao mesmo tempo, fiquei feliz porque sei que ela se foi feliz, embora o que é Esperança tenha ficado e ficará sempre entre os que um dia a conheceram. Pois, como disse minha mãe para me consolar (já que não podia me abraçar), “ela cumpriu muito bem a sua missão e deixou em nós uma parte muito boa dela”.

Esperança. Hoje, nos dias em que essa palavra me é cada vez mais presente, sinto que não a perdi. Continuo a acreditar que é a última que se vai, embora ainda creia que seu corpo deveria ser imortal, que suas palavras deveriam ser eternamente ouvidas, que a Esperança centenária, assim como o sentimento homônimo, não deveria ter fim.

Portanto, só o que posso dizer aos amigos que esperam por notícias minhas é: nessa hora, eu queria estar em casa.

terça-feira, 24 de junho de 2008

O homem de muitas vidas

Como o Felipe Montero, que somente procurava por um emprego, acabou por fazer uma regressão involuntária à vida passada

O jovem historiador espalhava sua doutrina de antropólogo cético quando caiu-lhe por terra todas as suas crenças. Porque Felipe Montero, o mexicano que só queria largar as aulas que lecionava e se dedicar aos próprios escritos, deparou com seus escritos de outra vida. E que ele sequer conhecia. Do ceticismo a qualquer coisa que estrapole as barreiras humanas, depois de passar três dias no casarão da rua Donceles, Montero é agora a mais crente das criaturas. Crê em Deus, em espíritos e, sobretudo, em velhas senhoras.

Eram dez horas da manhã quando Montero se colocou em frente ao número 815 da Rua Donceles, no centro da Cidade do México; ali, onde pouco há além de palácios coloniais convertidos em oficinas, relojoarias, lojas de sapatos e lancherias. Prostrou-se ante o velho casarão por um anúncio de emprego, que lhe renderia quatro mil pesos mensais e um quarto cômodo.

Felipe Montero, embora fosse apenas um professor substituto em escolas particulares, foi bolsista na Universidade de Sorbonne, na França. Conta que leu o anúncio num jornal e, se não fosse cético naquela época, acreditaria — como hoje acredita — que fora tudo culpa do destino. Que aquele periódico lhe caíra nas mãos não por acaso, assim como não por acaso tudo sucedeu.

Conheceu Dona Consuelo, uma velha senhora de idade inexata — e cuja existência alguns vizinhos também desconheciam até a misteriosa história protagonizada pelo jovem historiador vir à tona. Ele descreve a todos que o rodeiam aquela que, pelas suas contas, já passara do centésimo aniversário: “um corpo raquítico e um cabelo muito branco que escondiam-se entre as cobertas”. Foi assim que a viu pela primeira vez naquela manhã em que resolveu ir em busca do emprego e assim a veria durante três dias.

Montero garante que foram mais que suas qualidades profissionais que impressionaram a anfitriã. Demorou a descobrir, no entanto, que segredo guardava aquela contratação inesperada que lhe exigia que permanecesse no casarão enquanto traduzia antigos escritos em francês. Dona Consuelo queria que a obra do marido, morto havia sessenta anos, fosse acabada e publicada como uma biografia póstuma, e assim o fez o mexicano acostumado a exumar papéis amarelados pelo tempo.

Nunca mais voltou para casa. Somente saiu do casarão na quinta-feira que se passou. Confessa que, a princípio, lhe assustavam os ares abatidos do lugar. Demorou a se habituar à falta de luz, às portas de via-vém em todos os cômodos e aos rins ao molho que lhe serviam nas refeições.

Enquanto estudava o francês um tanto deficiente do general Llorente, Montero conviveu com Consuelo, a quem só via enterrada sobre as cobertas, e a sobrinha, cuja existência ninguém jamais teve conhecimento, exceto ele. “Chamava-se Aura e contava vinte e poucos anos. Linda e sempre de verde. Mas tinha a impressão de que em tudo era muito parecida com a tia, até mesmo nos movimentos”, declara o jovem, que desacreditava também no amor até conhecer as duas mulheres.

Ele conta que Aura, assim como ele próprio, nunca saía de casa e obedecia incondicionalmente a tia. Somente o que a senhora lhe dissesse e fizesse parecia permitido à jovem. E, assim como ela, Montero decidiu-se por suportar, calado, as manias da decana, que não dispunha de outro assunto que não fosse o marido morto. Mesmo quando passaram a se relacionar amorosamente, por mais que Montero insistisse, a moça não aceitava fugir com ele. “Dizia não poder. Hoje, entendo que foi melhor assim”, desabafa Montero.

A obra do general Llorente a princípio não lhe revelara nenhuma novidade. Tratava de suas expedições, viagens pelo mundo, nada que já não pertencesse ao vasto universo de conhecimento do historiador. Nos últimos cadernos, no entanto, os escritos lhe revelaram excentricidades da esposa, como as ervas medicinais que cultivava no diminuto pátio sombrio.

Porém o jovem historiador precisou tão somente de uma imagem para ter suas crenças e costumes transformados para sempre. Apenas uma fotografia, onde viu retratados, em áureos tempos, a jovem Consuelo Llorente e... ele, Felipe Montero. Ali, onde deveria estar ele, o general. Mas, afinal, quem era quem? “Afinal, somos o mesmo”, desvenda Montero, a quem agora chamam louco.

Quando olhava as fotografias, lembrou-se dos gestos de Aura — sempre tão iguais aos da tia —, da submissão de Aura e das noites em que Aura lhe sussurrara na cama: “você é meu marido”. Aura, Aura, Aura. Sentiu o coração pulsar-lhe e o amor pela jovem confundir-se com o amor pela centenária; a adoração pelos textos do general embaraçar-se com a adoração pela própria obra.

Na época em que se recusava a aceitar qualquer crença, o jovem chamaria essa coleção de fatos de coincidência. Agora, não tem mais dúvidas de que a moça de verde nada mais era que o fruto do desejo da senhora Llorente em ter de novo o marido. Ou sua reencarnação, a qual, desde então, Montero contenta-se em ser.

O historiador, que outrora foi general, continua a escrever sua obra, a qual dará seqüência até a própria morte ou até a última encarnação. A casa úmida, onde pouco se enxerga além do próprio nariz, só foi adentrada por outras pessoas na última quinta-feira, quando Consuelo Llorente morreu. Foi quando, também pela primeira vez, a vizinhança da Rua Donceles viu as rugas centenárias da decana. Os comerciantes e os poucos frequentadores das lojas da região viram Montero chorar a morte da mullher que fora sua esposa. E nunca mais se soube de Aura. Somente foram encontradas, no pátio, as ervas medicinais bem conservadas.


* uma tentativa de transformar em new journalism o livro Aura, de Carlos Fuentes (que eu recomento... e que acabei de contar o final.)

sábado, 7 de junho de 2008

Severino e os Sapatos *

Severino contrariava a alcunha que lhe deram. A personalidade parecia abreviada nos olhos cor celeste, dados pela mesma mãe que escolheu chamar-lhe assim. Severino. Severo, lhe diziam. Preferia acreditar que lhe fora dado por razão do peixe homônimo, já que a genitora desconhecida que lhe havia registrado não lhe possibilitaria saber a razão. Nem se herdara os olhos dela ou do pai, também ignoto. Chegou naquela várzea distante quando muito pequeno. Tanto que não se lembrava. Vivia há muito tempo no lugar talvez esquecido pelo mesmo Deus a quem a mãe, mulata de olhos negros, fazia rezas.

Era um daqueles dias em que as nucas ferviam e sequer podiam ser salvas pelas sombras das poucas árvores. Pois as poucas árvores também tinham poucas folhas. A representação daquele mundo de pouco tudo, exceto pelo calor. O calor era a única coisa que se tinha de muito. Tudo queimava igual ao dia em que Severino tocara a mão no forno à lenha da mãe. Não por personalidade pirraça, já que tinha os olhos azuis. Somente por ser criança.

Tudo estava quente. Mas a areia que lhe tocava os pés não ardia. Não ardia porque Severino estava já acostumado aos pés desnudos sobre a terra torrada.

Nunca usara sapatos. Na verdade, sequer já os vira. Não até aquela tarde escaldante — mais uma entre muitas, mas que lhe pareceu ainda mais abrasadora. Podia mostrar conhecer muito da vida áspera — embora limitada em tempo e espaço. Conhecia os tons daquela terra, os temperos da cozinha, a direção dos ventos e até as palavras mais grosseiras dos homens mais xucros. Sabia que amanhã choveria, pois estava quente. Mas não conhecia aniversário, Natal e sapatos. Não até aquela tarde.

Naquele universo vermelho e cansado, não havia lugar para o supérfluo. Ali só havia essência. E a essência não inclui sapatos.

Embora estivesse quente, Severino preferiu ficar na varanda, onde a madeira passada parecia aquecer ainda mais o mundo. Sobre os joelhos, os cotovelos. Sobre estes, as mãos, que seguravam uma cabeça cansada de estar. Estar ali, sem nada. Sem vontade. Sem sapato.

Neste dia veio um homem, coisa que ali nunca vinha. Um magro de cabelos cinzas e roupas de cidade. Com apenas um olhar lhe cumprimentou inutilmente, pois nessa hora Severino não via olhos. Via sapatos. Marrons brilhosos que contrastavam com o marrom fosco da madeira e que atravessaram a varanda que rangia como patos. Entrou pela porta que ainda mais gritava, e lá dentro a mãe o recebeu.

O garoto não se movia, tais como os olhos de cimento, que ofereciam sua atenção aos ouvidos curiosos. Inútil tentativa. Escutava tão somente murmúrios. O sol fez o desenho das sombras da varanda se derreterem, até que alcançaram a parede. Foi quando então ouviu a voz rija dizer:

— Severino.

Sabia seu nome o homem de cidade. O homem cinza de sapatos marrons. Um estranho naquele mundo vermelho.

E novamente ouviu:

— Severino.

Agora vindo da voz terna daquela mãe mulata. Agora um chamado.

Entrou com a curiosidade tímida que não lhe permitia correr. A timidez que também não deixou que ele falasse enquanto as bocas da mãe e do homem se revezavam. Foi assim que alguma das vozes — que já não poderia dizer qual — revelou-lhe que era aquele seu padrasto.

O pai morrera e a mãe casara-se novamente. O homem cinza que não tivera filhos encontrara na descoberta da existência de Severino um consolo. Um filho. A mãe lhe revelara onde deixara o embrulho choroso havia anos.

Severino tremeu. Soluçou de susto. Um soluço rápido que só serve para seguir-se de um alívio de prazer. Um deleite maior quando o menino da vista azul e pés rubros soube que o padrasto queria um herdeiro. Tinha aquilo que chamava negócio. Uma loja. “A casa das sombrinhas”. Não sabia o que eram sombrinhas sob aquele céu ingrato que não dá chuva. Mas não importava o nome, já que nem sempre nomes são fiéis. Severino dos olhos azuis sabia disso.

A loja vendia sapatos.

E Severino ver-se-ia, enfim, livre da vida severa e descalça.


* sim, Severino é meu avô, embora a história seja muito pouco fiel à verdadeira.

sábado, 31 de maio de 2008

Um Artesão de Idéias

Talvez ele não estivesse ali, naquele beco apertado do Menino Deus. Ali, onde vive entre toras de madeira. Talvez ele estivesse agora em Londres, como passagem marcada para amanhã a Madri. Lá, entre a madeira trabalhada nos violinos e pianos das grandes óperas. Mas Seu Flávio, o marceneiro da vila Guaranha, prefere não cogitar o destino de sua vida se, aos 60 anos, o cigarro não tivesse apagado sua voz.

José Flávio da Conceição, marceneiro de profissão e cantor de ópera de dias passados, passa agora os dias a riscar em grandes cartolinas. Os bonitos armários, mesas, cadeiras, ou seja lá o que as madames de toda a cidade encomendem, saem dos desenhos um tanto tortos e sem muita perspectiva do marceneiro mais famoso da região. Mas são as mãos do filho e do neto que colocam em prática as obras do patriarca. As pernas de Seu Flávio já não permitem tanto esforço. Por isso ele desenha. Passa as tardes a planejar nos papéis amassados, sobre a mesa irregular na oficina apertada, com a astúcia de quem estudou desenho – que agora faz com as mãos mais inseguras – no Instituto de Bellas Artes. Um olho aqui e outro ali, no neto, que não herdou o talento vocal do avô. “Fala mais alto, guri!”. E resmunga: “Os guris de hoje não projetam mais a voz”.

Seu Flávio projeta a voz, agora já um pouco rouca, ainda como nos tempos de cantor. Faz questão de falar para ser ouvido. Pelos outros e por ele, que precisa espichar o corpo e pedir que os outros repitam. Mas se diz humilde, só fala o que deve. “Não tenho a vaidade de dizer o que eu sei. Vou dizer o que eu sei quando tu me perguntar”. É difícil imaginar que o homem de 77 anos, de sobrancelhas rudes e pés ásperos, já brilhou nos palcos mais aplaudidos do mundo. Que as mãos machucadas pela serragem já flutuaram no ritmo da música clássica. No lugar das roupas surradas e da boina, quase do tom cinza dos cabelos, já esteve uma indumentária de barítono-tenor. “Sou um dos quatro únicos no mundo que alcançam esses dois tons. Vou do Sol ao Dó num segundo”. Mas, hoje, os 37% de ar que retém, graças a um enfisema pulmonar, não deixam que ele respire o ar necessário para fazer uma cadeira, quanto menos para fazer um espetáculo.

Um dia, quando cantava na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, “faz uns 50 anos”, foi convidado para cantar na Inglaterra. “Mas lá não é como aqui. Ninguém pára para dar informação, ainda mais pra mim que não sabia uma palavra de inglês”. Conheceu a terra da rainha, a Espanha, a Itália, e mais um tanto de países que nem lembra. Dos irmãos latino-americanos, só contemplou de passagem o Paraguai, para onde foi comprar uma tevê. Mas nem sem palco deixou de cantar. E, assim como lhe acontece seguidamente nos bares do Menino Deus, foi convidado a soltar a voz num bar. Num espanhol convincente agradou com “Anahí... las arpas dolientes hoy lloran arpegios que son para ti. Recuerdan acaso tu inmensa bravura, reina guaraní”. Fala um bom espanhol e canta em italiano, mas não substitui a boa música brasileira. “Eu sou muito verde e amarelo. Gosto é de cantar o hino nacional da música brasileira”, e cantarola, distraído, Aquarela do Brasil.

Mas foi no Brasil que perdeu a chance de sua vida: um contrato com o Teatro Scala de Milão. Era o prêmio do concurso “Voz de Ouro”. Na etapa do Rio de Janeiro, a música escolhida para agradar foi Rio, Caminho de Ouro. “Eles me adoraram!”. E venceu. Na final em Porto Alegre, um copo de água gelada pela manhã, que o impossibilitou de cantar, foi o suficiente para dar o primeiro lugar ao hoje famoso tenor Nino Valsani. “Se eu tivesse cantado, seria uma das maiores vozes desse país. Porque hoje em dia só tem porcaria, e eu to aqui sentado vendo essa porcaria”, resmunga, analisando a cantora Alcione no Domingão do Faustão, que “tem uma boa caixa de som, mas só canta porcaria”.

Confessa que a vida de cantor seria mais descansada, porque dependeria só dele mesmo. Mas, com uma felicidade de gente simples, garante não se arrepender de nada. “É uma carreira muito difícil a de cantor. Eu era jovem, bonito e muito assediado. Acho que sou mais feliz assim”. Mesmo porque, se quisesse, poderia ter voltado a cantar. Diz saber limpar o pulmão com óleo de capivara, mas ele fica muito frágil, sem resistência. Por isso, preferiu não seguir o exemplo de um amigo, que usou e morreu pneumonia no primeiro frio do inverno.

Adora ser marceneiro. Parece divertir-se tanto com música quanto com madeira, a qual calcula com o cuidado de um compositor para não perder nenhum centímetro no corte. “Sou um pesquisador da profissão, faço coisas inéditas. Faço um guarda-roupas de 30 portas sem dobradiças e que nunca entra cupim”. Mostra, orgulhoso, o invento desenhado na grande cartolina, cujo projeto nunca foi comprado por nenhuma loja, já que é uma peça quase interminável, “dura uns 200 anos”. Por isso ele mesmo, com um financiamento, vai investir na produção e venda do invento. Fará propaganda própria, garante, assim como já faz para vender às madames. A propaganda do trabalho de Seu Flávio é feita mesmo no boca-a-boca.

Seu conhecimento sobre a química da madeira, tão importante para a descoberta da imunização aos cupins, não vem de família, mas da época em que fez remédios. Assumiu o cargo quando o costume de beber derrubou o titular, farmacêutico de profissão formado na Alemanha. Como assistente, Seu Flávio conhecia todas as receitas e começou a fazer os remédios. Mas, embora bêbado, o farmacêutico nada tinha de burro, e sempre escondia alguns segredos de boticário. O resultado foram remédios voltando em larga escala e a quase-falência da farmácia, que foi obrigada a recontratar o alcoólatra.

O apartamento de três quartos de Seu Flávio é de uma beleza simplória. Logo na entrada, a porta de desenhos curvos e bem lixados não deixam dúvidas quanto à profissão do proprietário. Uma sala onde não cabe muito mais que dois sofás, uma mesa, também feita por ele, e uma estante. Sobre esta, fotos de crianças. Nenhuma delas de seus netos. Com Dona Eva, segunda esposa, não tem nenhum. “Mas somos protegidos por Cosme e Damião”, ela diz. As crianças estão sempre na casa. Filhas de vizinhos, filhas de amigos, filhas de ex-namoradas do filho. Seu Flávio não parece tão empolgado quanto a mulher quando se fala em filhos. Com ela, teve dois; com outra, dez, dos quais resultaram seus vinte e sete netos.

Os netos nunca deram problemas. O que trabalha na marcenaria tem dezessete anos. Os filhos estudaram; alguns, na universidade federal. Todos trabalham. Somente aquele a quem Seu Flávio deu o próprio nome parece não ser o seu orgulho. João Flávio trabalha com o pai. Converteu-se à Igreja Evangélica e agora diz que é filho de Deus, não mais de Seu Flávio. A marcenaria, onde antes cabiam armários e mobílias de todo o tipo, agora se resume a uma pequena ilha em meio a madeiras e lixo. Uma parte do teto, João arrancou para secar roupas. Em dias de vento e chuva, o local sofre com o dilúvio. E Seu Flávio, com o enfisema. Quando o pai ficou no hospital durante alguns meses, o filho abarrotou o local para esconder as máquinas e não perder a herança. Herança que daria ao novo pai: o pastor da igreja. Quando Seu Flávio teve alta, foi ameaçado de morte pelo filho. “Disse que ele não se atrevesse comigo, que eu cortava a garganta dele”, diz o dedo em riste e a cara de pai que dá a lição. Mas, como pai, também amolece. “Eu tenho é pena dele”.

Seu Flávio é ateu. “Eu só acredito no que eu vejo. É um atentado a minha inteligência”. A candura de menino e a dureza que os anos lhe deram lhe conferem um ar de controvérsia. Ama ou odeia as pessoas. Não tem meio termo. “As pessoas são boas, viu? Não sei se fui eu que plantei coisas boas e acabei encontrando só coisas boas”, é o que diz quando narra acontecimentos que diz guardar como “relíquias”, como o da mulher que o levou ao pronto-socorro quando seu pulmão teve mais uma recaída no meio da rua. A bem-feitora deu o número de seu telefone agregado ao 9090, para que ele ligasse a cobrar e ela o fosse buscar. Sempre que lhe falta ar na rua, um anjo lhe carrega para o hospital. Da Brigada Militar, localizada ao lado da vila, ele já perdeu as contas de quantas caronas ganhou. Mas quando o assunto é trabalho, gente ruim há aos montes. Tem quem já o tenha tentado roubar, quem não quisesse pagar, quem quisesse passá-lo para trás. Um deles, Seu Flávio ameaçou de morte. Muitos outros, já xingou sem pudores. “As pessoas têm que ser corretas comigo, senão, passo-lhe o laço. As únicas pessoas descentes são eu e o Velho João, um preto que vendia madeira”. Súbito, desune as sobrancelhas severas e solta uma lágrima que percorre a ruga alinhada abaixo do olho. Somente em outro momento solta lágrimas como para o Velho João. É quando recita a própria poesia – uma de muitas:

Um sábio me dizia que essa existência
Não vale a angústia de viver
Homens, eis o que somos neste mundo
Uma célula orgânica que aparece

Cresce, vibra e se dissolve num segundo

Eis a vida

Assim falou-me um sábio

E pela primeira vez eu comecei a ver

Dentro da própria morte

O encanto de morrer


“Agora vem a parte mais linda, o final”. É quando a lágrima enfim cai:


Uma mulher falou-me
Feche os olhos, meu amigo

E sonhe

Com uma doce companheira

Que muito a queiras

E que também te queira

Cortinas muito brancas na vidraça

Um passarinho que canta na gaiola

Que vida linda lá por dentro rola

Assim falou-me uma mulher

E pela primeira vez eu comecei a ver

Dentro da própria vida

O encanto de viver.


“É muito linda”, suspira.

Quando canta ou declama, mantém os olhos fixos no seu interlocutor. Parece exigir atenção. Nesse momento, esquece-se do ar que falta, das rabugices, de tudo em volta. É como se fizesse aquilo pela primeira vez, com um brilho de criança contente nos olhos. “Por que ele não é sempre assim?”, pergunta Dona Eva, acostumada a correr de um lado a outro da casa atrás do nebolizador que a salvará dos resmungos sufocantes do marido. Depois de quase meia hora com o tubo verde sobre o nariz e a boca, no entanto, já é mais sorridente e falante. É muito falante. “Ele não pára. Tá sempre falando, falando, falando”, ri Dona Eva.

Há alguns meses, Seu Flávio foi mandado pelos médicos para a psicóloga do hospital. Por quê? “Para encobrir a incapacidade deles, só pode!”. Dona Eva explica. É que o marido, já famoso no Hospital de Clínicas pela cantoria e pelos saraus poéticos em meio aos corredores, não conta para os médicos o que faz em casa. “Baixa o exu nele e ele quebra o nebolizador. Isso sem falar que vive esquecendo os remédios. Por isso, a doutora Marli quer que eu vá sempre junto para contar o que ele faz. É muito medonho. Me enlouquece. Por isso que eu digo que vou morrer antes dele”. Ele ri como criança travessa e acaricia a cabeça da mulher, com quem é casado há 36 anos.

Fora o pulmão, as pernas e o ouvido, tudo parece funcionar como se ainda tivesse os 50 anos da foto sobre a estante. Um filhote de onça se debruça sobre um Seu Flávio forte e bonitão, que lhe dá leite com uma mamadeira em algum lugar do Maranhão. Em casa, depois da meia hora inalando o soro fisiológico, ele parece voltar à forma e corre de uma peça à outra. Tudo parece funcionar. Na rua, se agarra com dificuldade às grades. “Mas se ele vê uma mulher, já melhora”, Dona Eva implica. Ele olha a tevê e finge não ouvir. Certa vez, quando, acompanhado da mulher, passava mal em frente ao Clínicas, uma vendedora de água não dispensou uma cantada ao setentão. Dona Eva nem liga, e ainda ri. “Se ela quiser tirar uma casquinha, pode”. Ele olha a tevê e finge não ouvir.

Seu Flávio parece não se arrepender de nada. Nem do copo de água gelada, nem do filho rebelde-evangélico. Mas os gestos firmes, o olhar firme, as mãos firmes e decididas, tornam-se instáveis quando fala do cigarro. Este sim, que o faz se agarrar em grades e sofrer em dias úmidos. O secretário da saúde do município, uma de suas muitas influências no mundo político, convidou-o para dar palestras contra o cigarro em colégios, já que ele falaria com conhecimento de causa. Como tudo o que faz, levou a sério a proposta e, com a responsabilidade de marceneiro que entrega encomendas na data, escreveu um monólogo para apresentar, mas o projeto nunca saiu do papel. “O prefeito não tem interesse nisso. Não daria uma boa propaganda”.

Da época de candidato a vereador em Viamão guardou amizades políticas. Da época de ascensorista, a cumplicidade de Leonel Brizola. Foi convidado por Lupicínio Rodrigues a cantar em São Paulo. Procópio Ferreira esqueceu de escrever o poema, e mandou o amigo Flávio em seu lugar. Tem amigos em todos os cantos. Conversa com todos, sem qualquer preconceito. No ônibus, pede licença e já inicia um diálogo. Faz questão de ressaltar seu diferencial. “Me comunico com as pessoas, por isso elas são legais comigo”.

As carreiras de cantor, ator, poeta, pai, avô, farmacêutico, político e marceneiro sempre foram levadas com responsabilidade. Se tem uma coisa de que ele se orgulha, é de ser responsável. Diz ter muita dedicação e respeito pelas pessoas. “Se a pessoa não vive pra servir, não serve pra viver” é o seu lema. Sabe que é daí que vem o grande respeito que lhe conferem desde o Lupicínio até o Luciano, um ajudante com problemas mentais, “mas de bom coração”. Orgulha-se disso mais que da voz de barítono-tenor. Por isso, prefere estar ali, entre a madeira bruta na vila Guaranha.

sábado, 24 de maio de 2008

Manifesto Anticonsumista

Vou fazer aqui uma campanha. Uma campanha e um apelo desesperado. Trata-se de um fato que, de tão prosaico, já não é percebido pela maioria daqueles que me cercam. Que estão por aí, fazendo um danado mal inconsciente. E meu papel de pessoa um tanto consciente me incumbe de um alerta.

Fatos do dia-a-dia tornam-se mecânicos. O que não é novidade, é levianamente feito de modo que tudo simplesmente saia conforme o costumeiro. Nem certo nem errado. Somente que saia. Num supermercado, onde espíritos consumistas são ativados por tantas novidades altamente capitalistas e sem qualquer utilidade, nossos cérebros esquecem-se de pensar. Apenas agem. Aqui e ali, uma novidadezinha satisfaz nossos desejos repentinamente indispensáveis.

Nesse alvoroço de anseios, até compreendo a rejeição involuntária a qualquer pensamento lógico. Ao pensamento um pouco menos irracional. Sei que, nessas horas de tamanha alegria – ou debilidade –, é difícil largar o próprio egoísmo. Mas, mesmo assim, eu peço, peço bem desesperada: parem de usar sacolinhas!

Eu passo pelo caixa com um bandeide e um chocolate. Num ato impensado, o moço-empacotador-mau-treinado mete o bandeide numa sacola; o chocolate, noutra. E eu repito, pela qüinquagésima nona vez, um “tudo numa só, por favor”. Que mal, afinal, um bandeide fará a um chocolate? Menos ainda o contrário. E assim vamos, loja após loja, enchendo o mundo de sacolinhas. Preenchendo o mundo de plástico por, pelo menos, uns cem anos mais.

Passeando em janeiro pela Argentina, saímos de um mercadinho com os produtos na mão, para não pagarmos sacola. Em vários lugares, a famosa “sacolinha” de supermercado já foi substituída por outra que se decompõe mais rapidamente. Na Alemanha, na Dinamarca e em várias cidades americanas já proibiram o uso delas. Recentemente, a desenvolvidíssima China baniu a dita. E aqui, ora pois!, nem os educadíssimos atendentes do Zaffari são treinados a não oferecer o maldito polímero! Parecem treinados para justamente o oposto.

Milhares e milhares de sacolinhas passam por dia pelas nossas mãos e não!, não usamos todas para "lixinho". No Paraná, o governo adotou medidas como a distribuição gratuita de sacolas oxi-biodegradáveis, que se decompõem em 18 meses.

Enquanto isso não acontece por aqui, tenho uma sugestão: sigam o exemplo da minha mãe, que carrega suas invenções de pano para a feira – chamada ecológica, mas onde todo mundo faz questão de proferir “uma sacolinha?". Por isso, vou fazer uma campanha. Se for muito difícil largar o vício, sugiro que parem de comprar. Antes que se afoguem em sacolinhas.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Donas Maricotas não são mais as mesmas

Ônibus são terrenos férteis para boas idéias. “Boas pautas”, diria um jornalista. Diria eu. Digo eu que adoro ônibus. Exceto quando uma tia gorda me “abunda” (no sentido de bunda, mesmo) durante toda uma viagem, ou quando tias atucanadas esperam na porta de saída para só saírem no final da linha e atrapalham a saída alheia, eu gosto mesmo de ônibus.
Mas, bem. O que quero contar é sobre a tia no ônibus. Não a da bunda ou a outra. Mas a tia de seus setenta anos –- deveria chamá-la de vó, pois --, que agora sai pela porta de trás graças ao novíssimo sistema-que-não-deu-certo (ou deu TRI-errado?). A tia que foi a graça do meu dia. A graça e a desgraça. Quando a gente enfim pensa que o mundo tem jeito, uma vó dessas desencanta-nos. Vós deveriam dar exemplo de boa conduta, de educação. Como toda mãe é virgem, toda vó é bem-educada. Vós foram criadas em tempos áureos, quando as pessoas não falavam palavrões. É o que nós, jovens de vocábulos tão chulos, pensamos. Eu pensava. Até hoje.
Dona Maricota –- como aqui a chamaremos, por ser nome de vó –- era baixinha e corpulenta, daquelas que parecem bolinhas infláveis. Os cabelinhos prateados em coque e o andar de pêndulo eram seus encantos. Uma saia e uma conga. Uma perfeita lady da terceira idade porto-alegrense. “Um amor de vó”, diriam aqueles que não a conhecem. Ou que não viram o que eu vi. O destino de Dona Maricota, naquele ônibus com um pouco mais de gente que assentos disponíveis, era a Câmara dos Vereadores. O que aos setenta anos ela queria ali, eu nem imagino. Detive-me apenas na forma com que Dona Maricota alcançaria seu objetivo.
Levantando-se do assento com dificuldade metros antes da parada, ela correu à porta como se o ar lhe faltasse. Precisava ir à rua, por isso correu. Tinha medo que o ônibus arrancasse e os vereadores ficassem para trás. Correu com aquele jeito pêndulo de ser. Mas a educação de tempos áureos não lhe ficou na memória. Nem no inconsciente. Dona Maricota saiu a atropelar um menino-malandro, com o próprio nome tatuado em enormes letras no braço. O Leonardo, como eu e todos ali sabiam, foi o alvo de Dona Maricota.
“Me deixa sair, deixa eu ir na tua frente! Sai da frente, sai da frente!”, ela gritou ao Leonardo apavorado. E o Leonardo não saiu, coitado. Nem tinha que sair. Nas plaquinhas vermelhas, onde então dizia “assento preferencial”, ele não lembrava ter lido a mesma designação para “saída”.
“É um idiota, um imbecil. Brincadeira! Que m...”, e mais um monte de resmungos inaudíveis a mim. Já o Leonardo, deve ter ouvido alguns mais lá fora. Isso se não levou um puxão de orelha de brinde. Fiquei feliz, por um momento, de o futuro ser do Leonardo -- mesmo com aquela tatuagem -- e não da Dona Maricota. Porque as Donas Maricotas já não são mais as mesmas.

E digo, um tanto decepcionada: não creiam mais em mães virgens e em vós bem-educadas.

domingo, 4 de maio de 2008

O Show da Fé

Um texto não-gonzo...

Lá de cima, os grandes holofotes iludem os olhos. Fazem crer no verde reluzente como quadros de Monet. Os milhares que rodeiam a grande relva urbana nada sabem sobre arte impressionista, mas conhecem o valor daquele gramado milimetricamente dividido em dois tons. O espaço é sagrado. Sabem que no verde só os escolhidos pisam, e aguardam ansiosos os pés que ali tocarão.

Lá de baixo, olham para cima e sequer reparam no verde mal cuidado misturado ao marrom do barro malcheiroso. São milhares de pessoas que se esmagam na ponta dos pés, numa tentativa desumana de enxergar entre cabeças. Dali a pouco, alguém terá para si todos os olhos e ouvidos estendidos ao longo da orla, mas ninguém colocará tão cedo os pés no lugar sagrado. Apenas tentarão alcançá-lo com as mãos. É o Show da Fé.

No Beira-Rio, o show se chama Gauchão. Aqui, o inimigo vem das bandas serranas e traz consigo adoradores com os mesmos decibéis. Um oleleô, um vaitomanocu, algumas palavras fétidas e alguns Us soltos em hora inconscientemente combinada. Tudo sai das bocas com sotaques diferentes em cada lado da arquibancada. Tapo os ouvidos, finjo acreditar que o show está lá embaixo. Na arena, vinte e dois com ares estúpidos se degladiam pelo objeto rotundo do desejo.

Na beira do rio, a poucos metros na direção norte do mar vermelho, não se tem inimigos. A paz reina nos corações e as palavras são de amor. Aqui, são todos irmãos. Vêm apertados em ônibus lotados do litoral, da serra, da fronteira ou da terra de ninguém. Mas entre eles não há diferenças. São todos filhos de um mesmo pai. Todos crêem na mesma coisa, e não lhes importa se nisso há alguma razão.

Nas arquibancadas, a fé também vem do berço. É-se vermelho desde o batismo, sem direito a protestar. O quatro-três-três, o quadrado mágico, o losango fantástico, tudo pode dar errado, levá-los à segunda, terceira, quarta divisão. Ninguém, no entanto, sob qualquer resultado, ousa trocar a cor do manto sagrado. Se trocassem, o homem que se descabela num canto e solta gemidos seria o culpado. As pernas ameaçam invadir o campo numa tentativa inútil de salvar sua desgraçada tática. O jogo do técnico pode torná-lo o Cristo. Quando do contrário, é o Lúcifer logo demitido do paraíso.

Seres vestidos de azul são múmias que sussurram e distribuem o caminho para o céu. São papéis com listrinhas pretas, códigos de barras. Um deles pára na minha mão como milagre. Aqui, ao contrário do outro show, paga-se na saída. “Sejam acionistas de Deus”, clama um Pastor de voz galante. Tem pinta de artista de cinema para o qual ninguém protesta. Um Richard Gere capaz de seduzir homens e mulheres e de levá-los, literalmente, ao paraíso. Ele está sempre certo, não importa a tática. O pastor dá as ordens que lhe convém às ovelhas desgarradas. “Ponham a mão na cabeça”, confunde-as com macacos. “Sai, sai, sai!”, gritam com ele as mãos que espantam o diabo. Depois, elas se dirigem para o céu azul que os sobrepõe e cantam.

A cor do céu é a mesma do sangue, assim como dos mantos que mais da metade do estádio carrega no corpo. Alguns fiéis ainda reforçam a crença com panos quilométricos abertos de cima a baixo sobre as cabeças. Parecem não se importar com a pouca visibilidade dos santos de chuteira. Pulam sem parar. Agarram todas as mãos. Tornam impossível a qualquer um assistir ao jogo sem oscilações. É um sobe e desce sem qualquer temor dos muitos metros abaixo na arquibancada. É um depósito inabalável de fé.

A mistura de mãe-colorada-católica-não-praticante e pai-gremista-luterano-não-praticante resulta em filhos apáticos a qualquer fanatismo. Eu não tenho santos nas mãos, nem cara de compreensão. Sinto que me olham de revesgueio. Embora venha d’outro mundo, a energia causa um barato sem contra-indicações. Lembro do que dizem: gente de fé é gente que não faz terapia. Não custa tentar.

O espetáculo esportivo chega a ser bonito. Algo um tanto balé, um tanto batalha. Algo entre palco e arena. Notas regidas pelo maestro auto-escabelado atrás da linha branca. Decadente é o espetáculo do mar vermelho revoltoso, em completa desarmonia consigo mesmo. Mal sabem os vinte e dois sagrados que dividem o próprio show. Já faço parte dele, já grito, já vibro por uma religião que agora é minha. Sinto a vibração dúbia, que pode aumentar ou diminuir minha racionalidade.

O espetáculo parece irracional. As mãos abestalhadas batem no ritmo das canções divinas, nas quais onze entre dez palavras são o nome do Homem que rege tudo aquilo. Eles dançam como minhocas lânguidas e fazem coreografias toscas e sem sincronia. Uma tia gorda fecha os olhos e faz cara de choro logo em frente. As palmas das mãos viradas para o alto esperam a bênção prometida, ou talvez um milagre que caia do céu. Como ela, há muitos. É um concurso de teatro dramático. Quem mais sofrer pelo Homem será o vencedor.

Fingir sofrimento na frente do Homem pode convencer. Aqui, o Homem é chamado juiz, mas seu juízo não é unânime. É o deus de apenas um dos lados. Precisa decidir por qual deles quer ser odiado. O outro, que se dane.

Já no galante da voz sedutora, acredita-se de olhos fechados e braços pra cima. O candidato mais esperto sabe disso. Ele sobe ao palco e solta duas frases bem construídas e uma graça aos céus, que lhe garantem milhares de votos nas próximas eleições. Em volta do grande palco, as pernas cansadas tentam se manter, mas não se entregam. Braços e cabeças vão ao alto, cantam e gritam...

GOOOOLLL!!! brada o radialista concomitantemente ao uivo da torcida. Em uníssono, o homem se esquece de ser homem. A razão dá lugar ao pathos irracional. Não há mais ninguém em torno, não há mais prudência. Os olhos são seguidores incansáveis de um único ponto. No campo, as pernas correm paralelas. Enredam-se, costuram-se, esquecem-se do que rola em frente. Miram o inimigo, miram a bola. Dane-se a bola. Já sou algo entre homem e macaco, é o que pensam. O objetivo agora são canelas. Caem, esfolam-se, um rola, faz cara tragédia grega. A torcida vibra. O cartão amarelo sob a cabeça do juiz tem efeito imediato sobre o vasto léxico da torcida. Protestam, clamam, sofrem, é questão de honra.

É questão de classificação, de alcançar o objetivo. O lugar no céu depende do fanatismo desvairado. O ídolo sente a adoração e faz direitinho seu trabalho. Joga conforme o time, dança conforme a música. O placar marca sucesso. Agora só resta a final. O final. Aí, então, estarão todos no paraíso.

...e retardatário, já que o vermelho já está no paraíso.

sábado, 3 de maio de 2008

Felicidade Relativa

Mais do que qualquer coisa, o grande mistério do mundo está na compreensão da felicidade alheia. O que é razão para seus prazeres insensatos não necessariamente é a outrem. Uma singular convenção diz, no entanto, que se você não seguir padrões, não há de ser feliz nunca. Por que a felicidade de todo mundo tem de ser igual, afinal?

Tudo deu-se numa dessas conversas de bar, nas quais sou participante passiva. Passivíssima, com o perdão do neo-superlativo. Sou grande apreciadora de conversas de bar, de escritório, de faculdade, de sarjeta. Contanto que se tratem de bons papos, lá estão meu bom ouvido e minha abençoada paciência. A boca, no entanto, engata por vezes, e timidamente, na primeira –- e volta logo ao ponto morto.

Um novo amigo teve a sorte, ou não, de conhecer minhas características de gente estranha ao mundo convencional. A pauta da noite, como já estou acostumada há mais de vinte anos, foi a minha vida de menina careta. “Eu não como carne”, foi o ponto de partida à discussão calorosa, seguida de um “também não bebo”. “Mas então tu não és feliz!”, foi o que me disseram. É o que me dizem há mais de vinte anos.

É de se pensar, óquei, se a pessoa que se conheceu há alguns minutos é ou não feliz sem o prazer das coisas que nos dão tanto prazer. Se (é o que eles dizem) é-se feliz sem ter no estômago um boi a altos níveis etílicos. Eu pensaria o mesmo de um ser incrivelmente peculiar que nunca tivesse provado o doce sabor da vida –- o chocolate, quero dizer. Mas eu lhes garanti: “sim, juro que sou feliz sem o boi ou a cevada”.

Há o que me faça rir e falar bobagem sem qualquer teor alcoólico. Ou o que satisfaça minha fome sem o sangue de outras espécies. Mas entendo perfeitamente quem precisa disso pra viver, assim como eu preciso do chocolate. E entendo perfeitamente –- e gosto também –- quem solta com facildade a língua em conversas de bar. Eu não consigo, mas ouvir, eu garanto, me dá uma felicidade inenarrável.

Existe gente feliz sem religião, assim como creio serem felizes os monges que passam os dias a rezar. Há quem seja feliz trabalhando ou fazendo nada a vida inteira. Há até quem diga que é feliz estudando matemática (nossa!). Só não creio que haja felicidade em quem não permite que outros o sejam.

Nada de bifes, cervejas ou verbosidade em bar. Tenho certeza que nada me faria mais feliz que uma boa companhia, a palavra final de um livro ou um banho de chuva. Além de ouvir. E só ouvir.

sábado, 26 de abril de 2008

O Sonho de Ícaro

Chama-se Adelir. Nada de Gabriel, Ariel, Nathanael. Só mesmo Adelir. Já que nome de anjo não tem, Adelir resolveu ser Ícaro. E, no anseio de chegar ao seu maior sonho, arrumou não penas e cera, mas balões e cordas. Com asas, afinal, seria mais difícil voar. Planejou durante anos a peripécia. Vinte horas atado em balões verde-cacto, amarelo-sabão, vermelho-rosa. Balões de criança, esmagados em festas até o bum e o choro. Mais de mil deles, todos assoprados até o limite pelo gás que faz voar. Padre Adelir está prestes a chegar ainda mais perto de Deus.

Especialista em céu, padre Adelir, assim como qualquer padre, sabe das condições divinas, mas nada das condições do vento. Algumas aulas de vôo aliadas a quarenta e dois anos de fé. Acredita ser isso suficiente para garantir segurança sobre as terras amareladas de Paranaguá, sua cidadezinha paranaense. Um macacão térmico, um capacete, um pára-quedas, um celular, um aparelhinho de orientação sem manual. A medida certa para permitir que os pés saiam do chão. Com o dedo no calendário, o dia foi escolhido pela rotunda lua cheia que estaria no céu. Pretende passar suas horas a contemplar o luar.

É vinte de abril e o famigerado padre da cidade sai minutos após a missa. Com a ajuda dos fiéis coroinhas e de dois ou três fiéis, sai carregado pelos suntuosos balões preenchidos na véspera. Às nove horas da manhã, a cidade desperta sob a névoa sonolenta de cidades pequenas. Em vez do mate quente das manhãs de domingo, os moradores vão se alimentar da fé. Em vez do jornal dominical, vão sugar da fonte da sabedoria do Senhor.

Sob a neblina já mais leve, a razoável multidão de cidades pequenas observa padre Adelir subir aos céus. A alguns metros do chão, ele já não ouve as palmas abafadas pelo som da borracha colorida. E deixa que o vento o leve. Leve como pena. Não lhe importa que os mares que ele agora vê estejam a alguns metros a sudoeste. E que mudem os ventos impiedosos lá de cima. Padre Adelir já é um anjo entre uma espuma alva e inconsistente.

A cinqüenta quilômetros da costa, sob seus pés só há uma rede azul ondulada. Acima da cabeça, um azul liso pincelado pelos tons emborrachados que se perdem aos poucos. Mesmo se quisesse gritar, sua voz já não poderia ser ouvida pelo resgate. O aparelhinho trazido não passa de um figurante sem manual. Mas não quer gritar. Como bom cristão, ele reza. E a reza murmurante do padre Adelir talvez só possa ser ouvida por Deus.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

O Professor Gaivota...

* comece sua leitura clicando aqui.
Um dos mais peculiares personagens da literatura não saiu da imaginação de um grande autor. O Segredo de Joe Gould, nascido da realidade de um jornalista, é mais fascinante do que algumas das mais fascinantes ficções. A refinada descrição, somada à discrição de Joseph Mitchell, oferece momentos memoráveis da curiosa trajetória de um homem, mais do que um simples andarilho barbudo de Nova York.

A leitura de O Segredo... prende o leitor a uma personalidade que, não fosse repleta de detalhes tão humanizados, pareceria uma alegórica criação. Longe de ser apenas mais um louco, o boêmio que passou pelos bancos de Harvard tem um jeito instigante. Os muitos mistérios que envolvem sua vida podem despertar no leitor antipatia ou encanto, mas não há quem deixe de se fascinar por, no mínimo, sua incrível eloquência.

O maior enigma do livro é encarnado pelas pretensões do personagem Joe Gould, que diz estar escrevendo uma obra onze vezes maior que a Bíblia. “Uma História Oral de Nossa Época” é o “segredo” que dá nome ao segundo texto de Mitchell, feito sete anos após a morte do protagonista. Nessa segunda obra, o autor acrescenta no que resultou a vida dele e de Gould depois do lançamento do primeiro perfil, O Professor Gaivota, para a revista The New Yorker, em 1942. A partir daí, Mitchell torna-se personagem. Relata suas aflições em relação a Gould, que passa a procurá-lo com freqüência após tornar-se o mais famoso boêmio da cidade.

Gould é um tanto egocêntrico e sente necessidade de demonstrar suas habilidades a todo tempo. Desde a História Oral, a partir da qual diz que deixará seu nome para a posteridade, até poesias e a língua das gaivotas, para a qual “já traduziu diversos poemas”. São todos eles motivos para o personagem buscar admiração e dinheiro de seus interlocutores.

Já que o único patrimônio que possui é um portfólio no qual carrega textos da “história informal de gente em mangas de camisa”, conta com a ajuda de conhecidos para comer, dormir ou se vestir. Precisa dos outros, portanto, para viver. Gente da alta sociedade que, conforme Mitchell, lhe dá somente aquilo de que não precisa mais, o que já não presta.

Diz também contar com os “amigos” para guardar o livro que escreve há 26 anos. O vaivém da procura pelos textos é um dos motivos que leva o autor a repensar a verdade contada por Gould. Mas a grande capacidade de observação do jornalista Mitchell o leva a uma atitude inesperada, quando descobre a verdade sobre a História Oral. Fazendo uma analogia à própria vida, ao próprio sonho de escrever um romance – quando a narrativa envereda para o lado mais intimista – Mitchell não denuncia Gould. A percepção de que o sonho, como o de escrever a H.O. do andarilho, pode ser uma grande obra, e que acabar com ele pode acabar com uma vida, leva-o à compreensão do que é, aparentemente, irracional no protagonista de suas obras.

Um dos grandes textos do jornalismo literário, “O Segredo de Joe Gould” é um exemplo de como a observação, a espera pela “árvore cair”, pode ser recompensada com uma boa história.


* Postagem interativa, resultado de trabalho para Jornalismo Literário (com adaptações).

segunda-feira, 31 de março de 2008

Sobre bancos, barrigas e dilemas.

Sempre cuido com os bancos vermelhos. Os apavorantes bancos rubros do ônibus, que piscam como sinaleiras em alerta. São eles destinados a pessoas com deficiência, a vovós e a futuras mamães. Preferenciais, é o que dizem. Já eu, prefiro não os preferir. Por isso, fujo dos bancos vermelhos.

Os bancos

De um lado, uma simpática senhorinha desfrutava de seu lugar à janela sobre o banco azul. Do outro, ninguém sobre os vermelhos. Não hesitei em acomodar-me ao lado na senhorinha, apesar de gostar de janelas. Da universidade à minha casa, são trinta minutos e a maior avenida da cidade a percorrer. Trinta minutos de sufoco sob o sol do meio-dia. A não ser que você consiga um banco azul. Era o que eu pensava.

O grande problema dos bancos vermelhos é precisar ceder o lugar às pessoas a quem eles se destinam. Mas, para pessoas de bom-senso, o adágio vale a todas as cores. O problema é saber a quem ceder o lugar. Que são a deficientes, vovós e gravidas eu sei. Mas quem são eles? É sempre um dilema saber se oferecer o lugar é respeito ao mais velho ou chamar o outro de velho. Mas o dilema, no meu caso, foi muito mais grave. Gravíssimo. Diria até: gravidíssimo!

A barriga, faltando uns oito décimos da avenida.

A menina – devia ter uns vinte e poucos anos – adentrou o ônibus. O coletivo estava lotado e sufocante, e eu ao lado da senhorinha com meus fones. A menina, que, afinal, não era idosa, não deveria ser uma ameaça, não fosse por um ligeiro detalhe. A barriga. Ela tinha uma longa e rotunda barriga, dessas não-identificáveis, dessas que não se sabe se tratar de bebê ou de beber. E ela parou do meu lado. Não tinha cara de grávida, mas tinha barriga.

O dilema, aos sete décimos que me restavam.

Se eu perguntasse à moça se queria sentar, demonstraria minha gentileza. Poderia, no entanto, também demonstrar minha grosseria ou, no mínimo, minha ignorância frente a barrigas. E, em vez de uma constrangida - no caso, eu -, seriam duas - eu e ela. Eu segurava o material de outra menina e, mesmo assim, parecia a mais insensível das criaturas. O ônibus lotava, a barriga me empurrava, e eu rezava. E, quanto mais eu rezava para chegar - ao meu destino ou ao dela -, mais demorava.

Seis décimos

Cheguei à Puc. Em outro dia, aquele seria meu destino. Naquele, porém, não era. Mais gente sobe. Ninguém desce. Comecei a sentir um enjôo, uma tontura, uma coisa parecida com culpa. Parecia-me que todos me olhavam e me condenavam. Condenavam minha bunda preguiçosa que não cedia em favor da barriga enigmática. Mas não havia que fazer. Não poderia ceder, mesmo porque a lotação, que causa a impossibilidade de qualquer movimento, não permitia que trocasse de lugar com a possível gestante.

Cinco décimos: a metade.

Tirei os fones e assim fiquei, pedindo socorro para chegar logo e fingindo não ver a barriga que quase roçava meu nariz.

Quatro...

... três décimos.


Nem a tortura, nem a censura, nem o irmão do Henfil ou as lágrimas de Marias e Clarisses. Nada naquele momento me fez sentir tanta ojeriza pela classe militar. Nada me fez odiar tanto, naquele espaço de tempo, a infeliz idéia, de um infeliz regime, de construir um infeliz campus universitário distante de tudo. Brilhante criação para evitar revoltas estudantis. Os revoltados, agora, são os estudantes do século vinte e um, que precisam chegar à fronteira com a cidade vizinha às sete e meia da manhã. E eu, chegar viva pro almoço.

Dois

Eu sofria. Por mim e por ela. Sim, porque ela sofria. Se ali havia um bebê ou uma melancia não importava. Ela sofria, eu sei. A música já não me salvava de qualquer murmuro dos censores passageiros. A minha chance seria ela saltar do coletivo antes de mim, mas nada. A do material que estava comigo desceu, ela não. Bendita suposta grávida!

Um


Mais alguns metros e uma parte da outra avenida. Esquivei-me para deixar o lugar. A menina se apoderou do banco com uma visível felicidade. Estávamos sãs e salvas. Ela, no banco azul. Eu, em casa e cheia de culpa. Devia ter perguntado o que ela tinha na barriga...

segunda-feira, 24 de março de 2008

O dúbio som do desespero

Alguma coisa acontece em algum espaço longínquo e ignoto. Uma dor, um suspiro, uma mão no peito e uma voz que clama. Ela tenta evitar a dor com as mãos que procuram apoio, enquanto alguém lhe afaga a alma com palavras de conforto. Quando já no chão, ela ouve o som que lhe afrouxa o peito: uóooo-uóooo!!!!

Em minutos, talvez segundos, a sirene soante rasga a cidade como um foguete. Contorna obstáculos com um poder inabalável que só as viaturas alvas têm. São carros de um lado para outro da larga avenida que, por centímetros, não se chocam na tentativa de ceder o passo. São pessoas que se questionam sabendo que não terão resposta. O grande carro branco da cruz de sangue leva já o agonizante sujeito?

Nesse meio tempo, nesse meio caminho entre a origem e o destino da ambulância, encontro-me. Estou lá, a caminhar no meu já costumeiro estado quase ausente de mim mesma, quando o ouvido se deixa tocar pela ressoante canção do desespero. Sinto uma ponta de desconforto no peito e, tal como o objeto alvo da ambulância, coloco nele a mão e procuro porto seguro.

A música desafinada, regida pela partitura de carros que se cruzam e sobem calçadas, me dá uma dor pungente. Acompanho todo o percurso da famigerada até perdê-la de vista. Torço em silêncio para que o tempo não corra mais que ela, e rezo uma reza qualquer de gente sem religião. Os dedos podem contar quantas vezes já sentiram sofrimento semelhante à da visão da cruz vermelha.

Continuo uma prece sem qualquer origem ou doutrina. Solto um sorriso aliviado. A essa altura, um coração voltou a bater e vários corpos recuperaram a alma. E, descobri, o dúbio som do desespero, que traz sofrimento e alívio, é o único capaz de salvar todas as almas.


terça-feira, 18 de março de 2008

Das carrancas e carrancudas da vida

Nos meus áureos tempos pueris, minha casa, que nunca foi das mais tradicionais, abrigava uma carranca* sob a escada. Era daquelas carrancas bem feias mesmo, vermelha e de grandes dentes, que encarava de pronto quem em nosso refúgio se atrevesse a entrar. “Para evitar maus espíritos”, era o que dizia minha mãe. Lá em casa, sempre tivemos aversão a esses “maus espíritos” e apatia por qualquer coisa que os apartasse. Incensos, pêndulos, muito sol e ar fresco e, claro, carrancas.

Pois bem. Nunca ninguém temeu ou fez qualquer sinal de iminente escarcéu ao ver, pela primeira vez, o sorriso um tanto macabro da nossa amiga. Ela até merecia certa simpatia de nossa parte. Não a ponto de lhe darmos nome (outro costume da família, também nada tradicional), mas era queridíssima por todos. Ou quase todos.

Uma só pessoa demonstrou aversão à presença da nossa protetora. Um amigo de minha mãe sentia-se misteriosamente incomodado quando convidado a sentar no sofá adjacente à escada. Não gostava dela e fazia questão de deixar clara sua antipatia, chegando ao ponto de sugerir que a colocássemos no lixo. Pois o sujeito – ou melhor, o espírito do sujeito - foi descoberto, tempos depois, como de má índole. Um “mau espírito”, portanto. E descobrimos que a carranca fazia jus a sua função, até ser perdida pela grande revolução causada por uma reforma arquitetônica.

Desde então, acredito nessa coisa de energia. Qualquer roupa que eu vista, qualquer lugar a que eu vá, qualquer situação em que me ponha, penso na tal da energia. Mas eu penso nela sobretudo quando conheço pessoas. E nela tenho pensado muito nesses tempos. Porque sempre há gente com aquela perene cara de insatisfação, com aquele ar fastidioso, cuja vida parece estagnada em dias de pé esquerdo.

Digo isso porque, já há algum tempo, conheci uma menina, bonita que é uma coisa. Tem daquelas belezas de dar inveja a outras meninas e de deixar babões os meninos. Mas, embora a beleza em qualquer forma – mesmo a que me cause inveja – me faça um bem danado, a dela me tem sido desagradável ao quadrado. É que, na dita, nunca sequer vi um sorriso, uma palavra boa, um gesto sensível. Ouso dizer que aquela boca que só faz soltar resmungos sequer um dia já sorriu.

“Espírito negativíssimo o dela”, diria a minha mãe. Dessas energias tão negativas que passam pra gente em transmissão direta e sem paradas no caminho. E, como ainda estou tentando descobrir como fazer o processo reverso, do pólo positivo ao negativo, dei uma de carranca e mandei-a embora da minha vidinha de belezas bem mais aparentes.

Mas, se alguém souber onde há, quero outra carranca. Sua eficiência já foi comprovada.

*21/03: Bueno, aí está uma foto da dita. Ela até sorri! Simpatissíssima!



segunda-feira, 17 de março de 2008

Carona pro norte

O que não falta é informação inútil nesse mundo, parafraseando a própria reportagem que li. “Um mapa da ilha de Lost”, é a origem da minha tragédia de hoje. Foi assim: abri um famigerado e respeitadíssimo site noticioso e vi aquilo que já vos falei. O tal do mapa. Já não duvido de mais nada, nadinha mesmo, nesse mundo informado e deformado.

Quem há de querer saber onde queda a Estátua de 4 Dedos ou o Cockpit do Vôo 815 Oceanic (e ainda saber que raios é isso)? Pior é que tem gente que quer (e sabe que raios é a coisa). Os lostmaníacos, tais como os maníacos de todo gênero, não se contentam com o objetivo da diversão pura e saudável. Há que saber da “unha encravada do Desmond até as pontas duplas do cabelo do Sawyer” (tá escrito lá!). Não sei quem é Desmond nem a moça de pontas duplas (porque só moças têm pontas duplas, ora!) e nem quero saber.

O mundo está perdidão, as pessoas estão perdidonas e ninguém mais sabe pr’onde ir, e há gente ainda querendo dar barato no cusco, em vez de tirá-lo da procissão. Tem quem não tenha emprego, futuro, vida!, e está preocupadíssimo com os perdidos na ilha deserta e com os “heróis” trancafiados na "casa mais vigiada do Brasil”, Bial.

Eu querendo mapa que me guie por aqui mesmo, nesse mundo já tão grande e tão real. Que me diga pra onde ir quando estou perdida – digamos, sempre – nesse caminho cheio de bifurcações, buracos e atalhos, e tem gente querendo seguir o coelho da Alice. Será que já se acharam por aqui ou desistiram de procurar o caminho?
Talvez mapas e bússolas não faltem. Falta mesmo achar o tal norte.

sábado, 8 de março de 2008

Prefiro sem venezianas

Eu estava sentada no ônibus, um sol danado a queimar a retina e um Chico a tocar os ouvidos e o coração. Como de costume, os olhos acompanhavam a rotina ruidosa daquele fim de tarde porto-alegrês. Iam pra lá e pra cá numa louca busca pelo conhecimento da vida alheia, dentro e fora do âmbito apertado do coletivo. Lá, viam senhores cansados numa tentativa de voltar ao lar com seus carros. Cá, gente de todo o gênero apertada em espaços desumanos.

Daqueles muitos, detive-me em dois, apenas. O que diziam era abafado em parte pelo ronco do ônibus, em parte pela melodia d’O Velho Francisco. Não ouvia, portanto, o que os dois rapazes falavam à frente. E, como não sabia ler lábios, continuei sem saber o motivo que os levava a se mexerem, ora um, ora outro, num vaivém incansável de intenções silábicas. Mas também não queria saber se os engravatados falavam da iminente Brahma gelada ou da boazuda do escritório. Só sei que alguma coisa neles me causava uma curiosidade desconfortante.

Se me perguntassem, na ocasião, o porquê dessa constatação, não saberia responder. E continuei longo tempo sem saber. Só depois – mas isso bem depois mesmo – dei por conta do quanto as impressões enraizadas podem nos influenciar sem percebermos. Explicar-me-ei. Dado o fato de que alguma coisa nos incomoda, de tanto nos incomodar, chega o tempo em que já não notamos sua presença, já que se mistura àquilo tão costumeiro. Passa despercebida. Não sabemos por que a situação tão incômoda é, afinal, tão incômoda. Até descobrirmos que o estado seria outro, não fosse a presença de um essencial elemento.

Fiz uma brevíssima análise física e psicológica dos sujeitos em questão. Pareciam boa gente, tinham barba feita e até passavam por bonitões. Os botões das camisas pareciam colocados com cautela nas respectivas casas, e as gravatas estava bem atada. Os gestos eram leves e até pareciam sorrir com grandes dentes alvos. Enfim, ambos encontravam-se dentro das perspectivas perfeccionistas de uma virginiana convicta. Nada de errado, pois.

Mas, não. Alguma coisa ainda incomodava. E muito, mas muito depois, entendi que a profunda aversão que sentira estava no rosto daqueles dois. Não na expressão mas, ao contrário, na falta dela. O que me deixava contrariada naqueles dois estranhos era – riam – os óculos. Os óculos escuros, negros até não poderem mais, tapavam por completo duas faces que tornaram-se, então, inexpressivas. Incomodava-me pensar, até então inconscientemente – se é que isso faz algum sentido – que ambos conversavam, um a olhar para o outro, de óculos. Um suposto e enganoso olhar, é claro, já que me parecia impossível que vissem um ao outro com aquelas enormes vendas pretas. Não que eu tivesse algo a ver com isso, com a vida e com os olhar trocado pelos dois, mas lembrei de meus traumas e esquisitices.

Os óculos, tema de seguidas interrupções de minha parte nas conversas, me incomodam seriamente. Eu paro tudo, desde a maior frivolidade até o mais profundo pensamento crítico do meu interlocutor, só para pedir-lhe que me deixe ver seus olhos. Essa tal “janela da alma” é literalmente traduzida por mim e, assim como as janelas de casa, prefiro que não tenham venezianas. Creio que tê-las abertas me parece um convite amigável a entrar.

* Óquei. Penso em comprar um óculos escuros – coisa que nunca tive – mas prometo usá-lo só para não queimar a retina no ônibus.


**Foto: Caminito de Buenos Aires por Liza, a futura companheira de morada portenha.