terça-feira, 17 de novembro de 2009

Chanel não aprovaria

O grito de liberdade sufocado pelos Bandeirantes

A universidade não tem católica no nome. Tampouco é protestante, muçulmana ou militar. Não tem regras eclesiásticas do vestir, nem obriga à burca. Tem sim o nome dos corajosos homens das odisséias pelo ouro. Homens da liberdade e da descoberta. Mas ainda homens. Está bem que, mesmo que fossem mulheres, não buscariam o ouro em saias. Mas é provável que não proibissem o uso delas.
Geisy, única bandeirante de saias, poderia não ter exagerado tanto no grito feminista e rosa choque de liberdade. Porém, ainda assim, estava no século 21. A universitária desfilou provocante com o seu um palmo de tecido, explorando o único ouro herdado dos bandeirantes: a universidade. Loira, rosa, provocante, como um brado retumbante de mulher moderna. Caminhou como num desfile de Chanel.
Coco Chanel não aprovaria o vestido rosa choque de mau gosto. Mas aprovaria o grito. Porque Gabrielle Chanel também teria que fugir com seus sapatos bico fino pelos corredores da universidade. Nem no século da estilista, no entanto, os quadrados homens de gravata reagiram com tal desdém ao comportamento feminino.
Parecia desgosto. Correu-se atrás. Não como admiradores ou famintos libidinosos. Correu-se. Perseguiu-se com a fúria dos descontentes. Com a ira dos ortodoxos fervorosos. Numa época em que já não há inquisição, e tampouco se tem medo de bruxaria, só restou pensar que os homens dos anos de Gabrielle sim gostavam de mulher. Os de agora, se pode duvidar. Não suportam ver as bonitas pernas como a ascensão do sensual poder feminino. Estremecem as próprias pernas, mas não de excitação. Renascidos das cinzas, os bandeirantes voltaram mais machistas do que nunca. A lei é a mesma: explorar e arruinar por onde passem.

Chanel desaprovaria a atitude reacionária, o grito de liberdade sufocado novamente.


*texto produzido para rádio.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Desassossego

Às vezes penso que é tudo enganação, delírio de quem vive num corpo e não sabe mais que suposições do corpo alheio. Penso de canto que pode ser a realidade de Borges ou Eco, onde as horas e as coisas talvez não sejam mais que sonhos, onde o tempo é cíclico e a realidade não é mais que ilusão. Fugazes coisas de uma existência não real, que correm o risco de já não estarem aqui quando eu voltar, ou quando abrir de novo a janela de onde vejo. Pode ser que eu já não estivesse aqui, e essa fosse a verdadeira enganação do mundo. Mas, cartesianamente, se penso estou aqui, e então a realidade existe para mim, ainda que com lapsos de desconfiança entrecortados entre uma cena e outra. Se racionalizo e vejo que se tudo sempre existiu, que meu tempo não é mais que sobreposto sobre o tempo alheio, talvez eu não seja a única enganada nessa história. E então me toma de salto o conformismo, e a idéia de adaptação à falsa verdade parece me atrair. Porque, ao fim, importa sim o mistério das coisas. Pois que seria da vida sem o experimento sem resultado do mistério da vida?

Aí então me acomodo, e me conformo com o inquietante silêncio ruidoso dessa tal verdade.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Buenos Aires, 2 de abril de 2009.

Aprendi a ignorar o tempo.
Desconheço se, nesse ou noutro espaço de vida, o ar que me entra será impuro e insuficiente. Importa-me agora (e não me importava ontem) que eu jamais tenha respirado com tanta tranqüilidade, ao passo que me afogo num brusco vendaval. Que cada pedacinho dos ares de outono – porque ares de outono tem essa leveza nostálgica – siga recorrendo essa matéria e alimentando esse espírito. Espírito que, graças ao ignorado tempo, sabe que deve submergir, vencendo a mão que lhe mantém sob a água.

Aprendi a ignorar a distância.
Não sei se vou estar longe ou perto. Mas já sou indiferente. Corri o mundo sem sair daqui e já sai daqui para o mundo, e não posso dizer qual experiência me doeu mais de prazer. Viajei horas por ideais e por sentimentos, e me dei conta que é bom estar lá, mas que estar cá nem sempre muda ideais e sentimentos. Só a alma deve estar onde eu queira, porque aprendi a ignorar esse materialismo estático.

Nesse instante e nesse lugar, onde e quando esteja, saberei ignorar o futuro e o espaço que me separam da vontade. Lembrar-me-ei que tempo e distância são irrelevantes. E que só sei de amor.