terça-feira, 24 de junho de 2008

O homem de muitas vidas

Como o Felipe Montero, que somente procurava por um emprego, acabou por fazer uma regressão involuntária à vida passada

O jovem historiador espalhava sua doutrina de antropólogo cético quando caiu-lhe por terra todas as suas crenças. Porque Felipe Montero, o mexicano que só queria largar as aulas que lecionava e se dedicar aos próprios escritos, deparou com seus escritos de outra vida. E que ele sequer conhecia. Do ceticismo a qualquer coisa que estrapole as barreiras humanas, depois de passar três dias no casarão da rua Donceles, Montero é agora a mais crente das criaturas. Crê em Deus, em espíritos e, sobretudo, em velhas senhoras.

Eram dez horas da manhã quando Montero se colocou em frente ao número 815 da Rua Donceles, no centro da Cidade do México; ali, onde pouco há além de palácios coloniais convertidos em oficinas, relojoarias, lojas de sapatos e lancherias. Prostrou-se ante o velho casarão por um anúncio de emprego, que lhe renderia quatro mil pesos mensais e um quarto cômodo.

Felipe Montero, embora fosse apenas um professor substituto em escolas particulares, foi bolsista na Universidade de Sorbonne, na França. Conta que leu o anúncio num jornal e, se não fosse cético naquela época, acreditaria — como hoje acredita — que fora tudo culpa do destino. Que aquele periódico lhe caíra nas mãos não por acaso, assim como não por acaso tudo sucedeu.

Conheceu Dona Consuelo, uma velha senhora de idade inexata — e cuja existência alguns vizinhos também desconheciam até a misteriosa história protagonizada pelo jovem historiador vir à tona. Ele descreve a todos que o rodeiam aquela que, pelas suas contas, já passara do centésimo aniversário: “um corpo raquítico e um cabelo muito branco que escondiam-se entre as cobertas”. Foi assim que a viu pela primeira vez naquela manhã em que resolveu ir em busca do emprego e assim a veria durante três dias.

Montero garante que foram mais que suas qualidades profissionais que impressionaram a anfitriã. Demorou a descobrir, no entanto, que segredo guardava aquela contratação inesperada que lhe exigia que permanecesse no casarão enquanto traduzia antigos escritos em francês. Dona Consuelo queria que a obra do marido, morto havia sessenta anos, fosse acabada e publicada como uma biografia póstuma, e assim o fez o mexicano acostumado a exumar papéis amarelados pelo tempo.

Nunca mais voltou para casa. Somente saiu do casarão na quinta-feira que se passou. Confessa que, a princípio, lhe assustavam os ares abatidos do lugar. Demorou a se habituar à falta de luz, às portas de via-vém em todos os cômodos e aos rins ao molho que lhe serviam nas refeições.

Enquanto estudava o francês um tanto deficiente do general Llorente, Montero conviveu com Consuelo, a quem só via enterrada sobre as cobertas, e a sobrinha, cuja existência ninguém jamais teve conhecimento, exceto ele. “Chamava-se Aura e contava vinte e poucos anos. Linda e sempre de verde. Mas tinha a impressão de que em tudo era muito parecida com a tia, até mesmo nos movimentos”, declara o jovem, que desacreditava também no amor até conhecer as duas mulheres.

Ele conta que Aura, assim como ele próprio, nunca saía de casa e obedecia incondicionalmente a tia. Somente o que a senhora lhe dissesse e fizesse parecia permitido à jovem. E, assim como ela, Montero decidiu-se por suportar, calado, as manias da decana, que não dispunha de outro assunto que não fosse o marido morto. Mesmo quando passaram a se relacionar amorosamente, por mais que Montero insistisse, a moça não aceitava fugir com ele. “Dizia não poder. Hoje, entendo que foi melhor assim”, desabafa Montero.

A obra do general Llorente a princípio não lhe revelara nenhuma novidade. Tratava de suas expedições, viagens pelo mundo, nada que já não pertencesse ao vasto universo de conhecimento do historiador. Nos últimos cadernos, no entanto, os escritos lhe revelaram excentricidades da esposa, como as ervas medicinais que cultivava no diminuto pátio sombrio.

Porém o jovem historiador precisou tão somente de uma imagem para ter suas crenças e costumes transformados para sempre. Apenas uma fotografia, onde viu retratados, em áureos tempos, a jovem Consuelo Llorente e... ele, Felipe Montero. Ali, onde deveria estar ele, o general. Mas, afinal, quem era quem? “Afinal, somos o mesmo”, desvenda Montero, a quem agora chamam louco.

Quando olhava as fotografias, lembrou-se dos gestos de Aura — sempre tão iguais aos da tia —, da submissão de Aura e das noites em que Aura lhe sussurrara na cama: “você é meu marido”. Aura, Aura, Aura. Sentiu o coração pulsar-lhe e o amor pela jovem confundir-se com o amor pela centenária; a adoração pelos textos do general embaraçar-se com a adoração pela própria obra.

Na época em que se recusava a aceitar qualquer crença, o jovem chamaria essa coleção de fatos de coincidência. Agora, não tem mais dúvidas de que a moça de verde nada mais era que o fruto do desejo da senhora Llorente em ter de novo o marido. Ou sua reencarnação, a qual, desde então, Montero contenta-se em ser.

O historiador, que outrora foi general, continua a escrever sua obra, a qual dará seqüência até a própria morte ou até a última encarnação. A casa úmida, onde pouco se enxerga além do próprio nariz, só foi adentrada por outras pessoas na última quinta-feira, quando Consuelo Llorente morreu. Foi quando, também pela primeira vez, a vizinhança da Rua Donceles viu as rugas centenárias da decana. Os comerciantes e os poucos frequentadores das lojas da região viram Montero chorar a morte da mullher que fora sua esposa. E nunca mais se soube de Aura. Somente foram encontradas, no pátio, as ervas medicinais bem conservadas.


* uma tentativa de transformar em new journalism o livro Aura, de Carlos Fuentes (que eu recomento... e que acabei de contar o final.)

sábado, 7 de junho de 2008

Severino e os Sapatos *

Severino contrariava a alcunha que lhe deram. A personalidade parecia abreviada nos olhos cor celeste, dados pela mesma mãe que escolheu chamar-lhe assim. Severino. Severo, lhe diziam. Preferia acreditar que lhe fora dado por razão do peixe homônimo, já que a genitora desconhecida que lhe havia registrado não lhe possibilitaria saber a razão. Nem se herdara os olhos dela ou do pai, também ignoto. Chegou naquela várzea distante quando muito pequeno. Tanto que não se lembrava. Vivia há muito tempo no lugar talvez esquecido pelo mesmo Deus a quem a mãe, mulata de olhos negros, fazia rezas.

Era um daqueles dias em que as nucas ferviam e sequer podiam ser salvas pelas sombras das poucas árvores. Pois as poucas árvores também tinham poucas folhas. A representação daquele mundo de pouco tudo, exceto pelo calor. O calor era a única coisa que se tinha de muito. Tudo queimava igual ao dia em que Severino tocara a mão no forno à lenha da mãe. Não por personalidade pirraça, já que tinha os olhos azuis. Somente por ser criança.

Tudo estava quente. Mas a areia que lhe tocava os pés não ardia. Não ardia porque Severino estava já acostumado aos pés desnudos sobre a terra torrada.

Nunca usara sapatos. Na verdade, sequer já os vira. Não até aquela tarde escaldante — mais uma entre muitas, mas que lhe pareceu ainda mais abrasadora. Podia mostrar conhecer muito da vida áspera — embora limitada em tempo e espaço. Conhecia os tons daquela terra, os temperos da cozinha, a direção dos ventos e até as palavras mais grosseiras dos homens mais xucros. Sabia que amanhã choveria, pois estava quente. Mas não conhecia aniversário, Natal e sapatos. Não até aquela tarde.

Naquele universo vermelho e cansado, não havia lugar para o supérfluo. Ali só havia essência. E a essência não inclui sapatos.

Embora estivesse quente, Severino preferiu ficar na varanda, onde a madeira passada parecia aquecer ainda mais o mundo. Sobre os joelhos, os cotovelos. Sobre estes, as mãos, que seguravam uma cabeça cansada de estar. Estar ali, sem nada. Sem vontade. Sem sapato.

Neste dia veio um homem, coisa que ali nunca vinha. Um magro de cabelos cinzas e roupas de cidade. Com apenas um olhar lhe cumprimentou inutilmente, pois nessa hora Severino não via olhos. Via sapatos. Marrons brilhosos que contrastavam com o marrom fosco da madeira e que atravessaram a varanda que rangia como patos. Entrou pela porta que ainda mais gritava, e lá dentro a mãe o recebeu.

O garoto não se movia, tais como os olhos de cimento, que ofereciam sua atenção aos ouvidos curiosos. Inútil tentativa. Escutava tão somente murmúrios. O sol fez o desenho das sombras da varanda se derreterem, até que alcançaram a parede. Foi quando então ouviu a voz rija dizer:

— Severino.

Sabia seu nome o homem de cidade. O homem cinza de sapatos marrons. Um estranho naquele mundo vermelho.

E novamente ouviu:

— Severino.

Agora vindo da voz terna daquela mãe mulata. Agora um chamado.

Entrou com a curiosidade tímida que não lhe permitia correr. A timidez que também não deixou que ele falasse enquanto as bocas da mãe e do homem se revezavam. Foi assim que alguma das vozes — que já não poderia dizer qual — revelou-lhe que era aquele seu padrasto.

O pai morrera e a mãe casara-se novamente. O homem cinza que não tivera filhos encontrara na descoberta da existência de Severino um consolo. Um filho. A mãe lhe revelara onde deixara o embrulho choroso havia anos.

Severino tremeu. Soluçou de susto. Um soluço rápido que só serve para seguir-se de um alívio de prazer. Um deleite maior quando o menino da vista azul e pés rubros soube que o padrasto queria um herdeiro. Tinha aquilo que chamava negócio. Uma loja. “A casa das sombrinhas”. Não sabia o que eram sombrinhas sob aquele céu ingrato que não dá chuva. Mas não importava o nome, já que nem sempre nomes são fiéis. Severino dos olhos azuis sabia disso.

A loja vendia sapatos.

E Severino ver-se-ia, enfim, livre da vida severa e descalça.


* sim, Severino é meu avô, embora a história seja muito pouco fiel à verdadeira.