sábado, 31 de maio de 2008

Um Artesão de Idéias

Talvez ele não estivesse ali, naquele beco apertado do Menino Deus. Ali, onde vive entre toras de madeira. Talvez ele estivesse agora em Londres, como passagem marcada para amanhã a Madri. Lá, entre a madeira trabalhada nos violinos e pianos das grandes óperas. Mas Seu Flávio, o marceneiro da vila Guaranha, prefere não cogitar o destino de sua vida se, aos 60 anos, o cigarro não tivesse apagado sua voz.

José Flávio da Conceição, marceneiro de profissão e cantor de ópera de dias passados, passa agora os dias a riscar em grandes cartolinas. Os bonitos armários, mesas, cadeiras, ou seja lá o que as madames de toda a cidade encomendem, saem dos desenhos um tanto tortos e sem muita perspectiva do marceneiro mais famoso da região. Mas são as mãos do filho e do neto que colocam em prática as obras do patriarca. As pernas de Seu Flávio já não permitem tanto esforço. Por isso ele desenha. Passa as tardes a planejar nos papéis amassados, sobre a mesa irregular na oficina apertada, com a astúcia de quem estudou desenho – que agora faz com as mãos mais inseguras – no Instituto de Bellas Artes. Um olho aqui e outro ali, no neto, que não herdou o talento vocal do avô. “Fala mais alto, guri!”. E resmunga: “Os guris de hoje não projetam mais a voz”.

Seu Flávio projeta a voz, agora já um pouco rouca, ainda como nos tempos de cantor. Faz questão de falar para ser ouvido. Pelos outros e por ele, que precisa espichar o corpo e pedir que os outros repitam. Mas se diz humilde, só fala o que deve. “Não tenho a vaidade de dizer o que eu sei. Vou dizer o que eu sei quando tu me perguntar”. É difícil imaginar que o homem de 77 anos, de sobrancelhas rudes e pés ásperos, já brilhou nos palcos mais aplaudidos do mundo. Que as mãos machucadas pela serragem já flutuaram no ritmo da música clássica. No lugar das roupas surradas e da boina, quase do tom cinza dos cabelos, já esteve uma indumentária de barítono-tenor. “Sou um dos quatro únicos no mundo que alcançam esses dois tons. Vou do Sol ao Dó num segundo”. Mas, hoje, os 37% de ar que retém, graças a um enfisema pulmonar, não deixam que ele respire o ar necessário para fazer uma cadeira, quanto menos para fazer um espetáculo.

Um dia, quando cantava na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, “faz uns 50 anos”, foi convidado para cantar na Inglaterra. “Mas lá não é como aqui. Ninguém pára para dar informação, ainda mais pra mim que não sabia uma palavra de inglês”. Conheceu a terra da rainha, a Espanha, a Itália, e mais um tanto de países que nem lembra. Dos irmãos latino-americanos, só contemplou de passagem o Paraguai, para onde foi comprar uma tevê. Mas nem sem palco deixou de cantar. E, assim como lhe acontece seguidamente nos bares do Menino Deus, foi convidado a soltar a voz num bar. Num espanhol convincente agradou com “Anahí... las arpas dolientes hoy lloran arpegios que son para ti. Recuerdan acaso tu inmensa bravura, reina guaraní”. Fala um bom espanhol e canta em italiano, mas não substitui a boa música brasileira. “Eu sou muito verde e amarelo. Gosto é de cantar o hino nacional da música brasileira”, e cantarola, distraído, Aquarela do Brasil.

Mas foi no Brasil que perdeu a chance de sua vida: um contrato com o Teatro Scala de Milão. Era o prêmio do concurso “Voz de Ouro”. Na etapa do Rio de Janeiro, a música escolhida para agradar foi Rio, Caminho de Ouro. “Eles me adoraram!”. E venceu. Na final em Porto Alegre, um copo de água gelada pela manhã, que o impossibilitou de cantar, foi o suficiente para dar o primeiro lugar ao hoje famoso tenor Nino Valsani. “Se eu tivesse cantado, seria uma das maiores vozes desse país. Porque hoje em dia só tem porcaria, e eu to aqui sentado vendo essa porcaria”, resmunga, analisando a cantora Alcione no Domingão do Faustão, que “tem uma boa caixa de som, mas só canta porcaria”.

Confessa que a vida de cantor seria mais descansada, porque dependeria só dele mesmo. Mas, com uma felicidade de gente simples, garante não se arrepender de nada. “É uma carreira muito difícil a de cantor. Eu era jovem, bonito e muito assediado. Acho que sou mais feliz assim”. Mesmo porque, se quisesse, poderia ter voltado a cantar. Diz saber limpar o pulmão com óleo de capivara, mas ele fica muito frágil, sem resistência. Por isso, preferiu não seguir o exemplo de um amigo, que usou e morreu pneumonia no primeiro frio do inverno.

Adora ser marceneiro. Parece divertir-se tanto com música quanto com madeira, a qual calcula com o cuidado de um compositor para não perder nenhum centímetro no corte. “Sou um pesquisador da profissão, faço coisas inéditas. Faço um guarda-roupas de 30 portas sem dobradiças e que nunca entra cupim”. Mostra, orgulhoso, o invento desenhado na grande cartolina, cujo projeto nunca foi comprado por nenhuma loja, já que é uma peça quase interminável, “dura uns 200 anos”. Por isso ele mesmo, com um financiamento, vai investir na produção e venda do invento. Fará propaganda própria, garante, assim como já faz para vender às madames. A propaganda do trabalho de Seu Flávio é feita mesmo no boca-a-boca.

Seu conhecimento sobre a química da madeira, tão importante para a descoberta da imunização aos cupins, não vem de família, mas da época em que fez remédios. Assumiu o cargo quando o costume de beber derrubou o titular, farmacêutico de profissão formado na Alemanha. Como assistente, Seu Flávio conhecia todas as receitas e começou a fazer os remédios. Mas, embora bêbado, o farmacêutico nada tinha de burro, e sempre escondia alguns segredos de boticário. O resultado foram remédios voltando em larga escala e a quase-falência da farmácia, que foi obrigada a recontratar o alcoólatra.

O apartamento de três quartos de Seu Flávio é de uma beleza simplória. Logo na entrada, a porta de desenhos curvos e bem lixados não deixam dúvidas quanto à profissão do proprietário. Uma sala onde não cabe muito mais que dois sofás, uma mesa, também feita por ele, e uma estante. Sobre esta, fotos de crianças. Nenhuma delas de seus netos. Com Dona Eva, segunda esposa, não tem nenhum. “Mas somos protegidos por Cosme e Damião”, ela diz. As crianças estão sempre na casa. Filhas de vizinhos, filhas de amigos, filhas de ex-namoradas do filho. Seu Flávio não parece tão empolgado quanto a mulher quando se fala em filhos. Com ela, teve dois; com outra, dez, dos quais resultaram seus vinte e sete netos.

Os netos nunca deram problemas. O que trabalha na marcenaria tem dezessete anos. Os filhos estudaram; alguns, na universidade federal. Todos trabalham. Somente aquele a quem Seu Flávio deu o próprio nome parece não ser o seu orgulho. João Flávio trabalha com o pai. Converteu-se à Igreja Evangélica e agora diz que é filho de Deus, não mais de Seu Flávio. A marcenaria, onde antes cabiam armários e mobílias de todo o tipo, agora se resume a uma pequena ilha em meio a madeiras e lixo. Uma parte do teto, João arrancou para secar roupas. Em dias de vento e chuva, o local sofre com o dilúvio. E Seu Flávio, com o enfisema. Quando o pai ficou no hospital durante alguns meses, o filho abarrotou o local para esconder as máquinas e não perder a herança. Herança que daria ao novo pai: o pastor da igreja. Quando Seu Flávio teve alta, foi ameaçado de morte pelo filho. “Disse que ele não se atrevesse comigo, que eu cortava a garganta dele”, diz o dedo em riste e a cara de pai que dá a lição. Mas, como pai, também amolece. “Eu tenho é pena dele”.

Seu Flávio é ateu. “Eu só acredito no que eu vejo. É um atentado a minha inteligência”. A candura de menino e a dureza que os anos lhe deram lhe conferem um ar de controvérsia. Ama ou odeia as pessoas. Não tem meio termo. “As pessoas são boas, viu? Não sei se fui eu que plantei coisas boas e acabei encontrando só coisas boas”, é o que diz quando narra acontecimentos que diz guardar como “relíquias”, como o da mulher que o levou ao pronto-socorro quando seu pulmão teve mais uma recaída no meio da rua. A bem-feitora deu o número de seu telefone agregado ao 9090, para que ele ligasse a cobrar e ela o fosse buscar. Sempre que lhe falta ar na rua, um anjo lhe carrega para o hospital. Da Brigada Militar, localizada ao lado da vila, ele já perdeu as contas de quantas caronas ganhou. Mas quando o assunto é trabalho, gente ruim há aos montes. Tem quem já o tenha tentado roubar, quem não quisesse pagar, quem quisesse passá-lo para trás. Um deles, Seu Flávio ameaçou de morte. Muitos outros, já xingou sem pudores. “As pessoas têm que ser corretas comigo, senão, passo-lhe o laço. As únicas pessoas descentes são eu e o Velho João, um preto que vendia madeira”. Súbito, desune as sobrancelhas severas e solta uma lágrima que percorre a ruga alinhada abaixo do olho. Somente em outro momento solta lágrimas como para o Velho João. É quando recita a própria poesia – uma de muitas:

Um sábio me dizia que essa existência
Não vale a angústia de viver
Homens, eis o que somos neste mundo
Uma célula orgânica que aparece

Cresce, vibra e se dissolve num segundo

Eis a vida

Assim falou-me um sábio

E pela primeira vez eu comecei a ver

Dentro da própria morte

O encanto de morrer


“Agora vem a parte mais linda, o final”. É quando a lágrima enfim cai:


Uma mulher falou-me
Feche os olhos, meu amigo

E sonhe

Com uma doce companheira

Que muito a queiras

E que também te queira

Cortinas muito brancas na vidraça

Um passarinho que canta na gaiola

Que vida linda lá por dentro rola

Assim falou-me uma mulher

E pela primeira vez eu comecei a ver

Dentro da própria vida

O encanto de viver.


“É muito linda”, suspira.

Quando canta ou declama, mantém os olhos fixos no seu interlocutor. Parece exigir atenção. Nesse momento, esquece-se do ar que falta, das rabugices, de tudo em volta. É como se fizesse aquilo pela primeira vez, com um brilho de criança contente nos olhos. “Por que ele não é sempre assim?”, pergunta Dona Eva, acostumada a correr de um lado a outro da casa atrás do nebolizador que a salvará dos resmungos sufocantes do marido. Depois de quase meia hora com o tubo verde sobre o nariz e a boca, no entanto, já é mais sorridente e falante. É muito falante. “Ele não pára. Tá sempre falando, falando, falando”, ri Dona Eva.

Há alguns meses, Seu Flávio foi mandado pelos médicos para a psicóloga do hospital. Por quê? “Para encobrir a incapacidade deles, só pode!”. Dona Eva explica. É que o marido, já famoso no Hospital de Clínicas pela cantoria e pelos saraus poéticos em meio aos corredores, não conta para os médicos o que faz em casa. “Baixa o exu nele e ele quebra o nebolizador. Isso sem falar que vive esquecendo os remédios. Por isso, a doutora Marli quer que eu vá sempre junto para contar o que ele faz. É muito medonho. Me enlouquece. Por isso que eu digo que vou morrer antes dele”. Ele ri como criança travessa e acaricia a cabeça da mulher, com quem é casado há 36 anos.

Fora o pulmão, as pernas e o ouvido, tudo parece funcionar como se ainda tivesse os 50 anos da foto sobre a estante. Um filhote de onça se debruça sobre um Seu Flávio forte e bonitão, que lhe dá leite com uma mamadeira em algum lugar do Maranhão. Em casa, depois da meia hora inalando o soro fisiológico, ele parece voltar à forma e corre de uma peça à outra. Tudo parece funcionar. Na rua, se agarra com dificuldade às grades. “Mas se ele vê uma mulher, já melhora”, Dona Eva implica. Ele olha a tevê e finge não ouvir. Certa vez, quando, acompanhado da mulher, passava mal em frente ao Clínicas, uma vendedora de água não dispensou uma cantada ao setentão. Dona Eva nem liga, e ainda ri. “Se ela quiser tirar uma casquinha, pode”. Ele olha a tevê e finge não ouvir.

Seu Flávio parece não se arrepender de nada. Nem do copo de água gelada, nem do filho rebelde-evangélico. Mas os gestos firmes, o olhar firme, as mãos firmes e decididas, tornam-se instáveis quando fala do cigarro. Este sim, que o faz se agarrar em grades e sofrer em dias úmidos. O secretário da saúde do município, uma de suas muitas influências no mundo político, convidou-o para dar palestras contra o cigarro em colégios, já que ele falaria com conhecimento de causa. Como tudo o que faz, levou a sério a proposta e, com a responsabilidade de marceneiro que entrega encomendas na data, escreveu um monólogo para apresentar, mas o projeto nunca saiu do papel. “O prefeito não tem interesse nisso. Não daria uma boa propaganda”.

Da época de candidato a vereador em Viamão guardou amizades políticas. Da época de ascensorista, a cumplicidade de Leonel Brizola. Foi convidado por Lupicínio Rodrigues a cantar em São Paulo. Procópio Ferreira esqueceu de escrever o poema, e mandou o amigo Flávio em seu lugar. Tem amigos em todos os cantos. Conversa com todos, sem qualquer preconceito. No ônibus, pede licença e já inicia um diálogo. Faz questão de ressaltar seu diferencial. “Me comunico com as pessoas, por isso elas são legais comigo”.

As carreiras de cantor, ator, poeta, pai, avô, farmacêutico, político e marceneiro sempre foram levadas com responsabilidade. Se tem uma coisa de que ele se orgulha, é de ser responsável. Diz ter muita dedicação e respeito pelas pessoas. “Se a pessoa não vive pra servir, não serve pra viver” é o seu lema. Sabe que é daí que vem o grande respeito que lhe conferem desde o Lupicínio até o Luciano, um ajudante com problemas mentais, “mas de bom coração”. Orgulha-se disso mais que da voz de barítono-tenor. Por isso, prefere estar ali, entre a madeira bruta na vila Guaranha.

sábado, 24 de maio de 2008

Manifesto Anticonsumista

Vou fazer aqui uma campanha. Uma campanha e um apelo desesperado. Trata-se de um fato que, de tão prosaico, já não é percebido pela maioria daqueles que me cercam. Que estão por aí, fazendo um danado mal inconsciente. E meu papel de pessoa um tanto consciente me incumbe de um alerta.

Fatos do dia-a-dia tornam-se mecânicos. O que não é novidade, é levianamente feito de modo que tudo simplesmente saia conforme o costumeiro. Nem certo nem errado. Somente que saia. Num supermercado, onde espíritos consumistas são ativados por tantas novidades altamente capitalistas e sem qualquer utilidade, nossos cérebros esquecem-se de pensar. Apenas agem. Aqui e ali, uma novidadezinha satisfaz nossos desejos repentinamente indispensáveis.

Nesse alvoroço de anseios, até compreendo a rejeição involuntária a qualquer pensamento lógico. Ao pensamento um pouco menos irracional. Sei que, nessas horas de tamanha alegria – ou debilidade –, é difícil largar o próprio egoísmo. Mas, mesmo assim, eu peço, peço bem desesperada: parem de usar sacolinhas!

Eu passo pelo caixa com um bandeide e um chocolate. Num ato impensado, o moço-empacotador-mau-treinado mete o bandeide numa sacola; o chocolate, noutra. E eu repito, pela qüinquagésima nona vez, um “tudo numa só, por favor”. Que mal, afinal, um bandeide fará a um chocolate? Menos ainda o contrário. E assim vamos, loja após loja, enchendo o mundo de sacolinhas. Preenchendo o mundo de plástico por, pelo menos, uns cem anos mais.

Passeando em janeiro pela Argentina, saímos de um mercadinho com os produtos na mão, para não pagarmos sacola. Em vários lugares, a famosa “sacolinha” de supermercado já foi substituída por outra que se decompõe mais rapidamente. Na Alemanha, na Dinamarca e em várias cidades americanas já proibiram o uso delas. Recentemente, a desenvolvidíssima China baniu a dita. E aqui, ora pois!, nem os educadíssimos atendentes do Zaffari são treinados a não oferecer o maldito polímero! Parecem treinados para justamente o oposto.

Milhares e milhares de sacolinhas passam por dia pelas nossas mãos e não!, não usamos todas para "lixinho". No Paraná, o governo adotou medidas como a distribuição gratuita de sacolas oxi-biodegradáveis, que se decompõem em 18 meses.

Enquanto isso não acontece por aqui, tenho uma sugestão: sigam o exemplo da minha mãe, que carrega suas invenções de pano para a feira – chamada ecológica, mas onde todo mundo faz questão de proferir “uma sacolinha?". Por isso, vou fazer uma campanha. Se for muito difícil largar o vício, sugiro que parem de comprar. Antes que se afoguem em sacolinhas.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Donas Maricotas não são mais as mesmas

Ônibus são terrenos férteis para boas idéias. “Boas pautas”, diria um jornalista. Diria eu. Digo eu que adoro ônibus. Exceto quando uma tia gorda me “abunda” (no sentido de bunda, mesmo) durante toda uma viagem, ou quando tias atucanadas esperam na porta de saída para só saírem no final da linha e atrapalham a saída alheia, eu gosto mesmo de ônibus.
Mas, bem. O que quero contar é sobre a tia no ônibus. Não a da bunda ou a outra. Mas a tia de seus setenta anos –- deveria chamá-la de vó, pois --, que agora sai pela porta de trás graças ao novíssimo sistema-que-não-deu-certo (ou deu TRI-errado?). A tia que foi a graça do meu dia. A graça e a desgraça. Quando a gente enfim pensa que o mundo tem jeito, uma vó dessas desencanta-nos. Vós deveriam dar exemplo de boa conduta, de educação. Como toda mãe é virgem, toda vó é bem-educada. Vós foram criadas em tempos áureos, quando as pessoas não falavam palavrões. É o que nós, jovens de vocábulos tão chulos, pensamos. Eu pensava. Até hoje.
Dona Maricota –- como aqui a chamaremos, por ser nome de vó –- era baixinha e corpulenta, daquelas que parecem bolinhas infláveis. Os cabelinhos prateados em coque e o andar de pêndulo eram seus encantos. Uma saia e uma conga. Uma perfeita lady da terceira idade porto-alegrense. “Um amor de vó”, diriam aqueles que não a conhecem. Ou que não viram o que eu vi. O destino de Dona Maricota, naquele ônibus com um pouco mais de gente que assentos disponíveis, era a Câmara dos Vereadores. O que aos setenta anos ela queria ali, eu nem imagino. Detive-me apenas na forma com que Dona Maricota alcançaria seu objetivo.
Levantando-se do assento com dificuldade metros antes da parada, ela correu à porta como se o ar lhe faltasse. Precisava ir à rua, por isso correu. Tinha medo que o ônibus arrancasse e os vereadores ficassem para trás. Correu com aquele jeito pêndulo de ser. Mas a educação de tempos áureos não lhe ficou na memória. Nem no inconsciente. Dona Maricota saiu a atropelar um menino-malandro, com o próprio nome tatuado em enormes letras no braço. O Leonardo, como eu e todos ali sabiam, foi o alvo de Dona Maricota.
“Me deixa sair, deixa eu ir na tua frente! Sai da frente, sai da frente!”, ela gritou ao Leonardo apavorado. E o Leonardo não saiu, coitado. Nem tinha que sair. Nas plaquinhas vermelhas, onde então dizia “assento preferencial”, ele não lembrava ter lido a mesma designação para “saída”.
“É um idiota, um imbecil. Brincadeira! Que m...”, e mais um monte de resmungos inaudíveis a mim. Já o Leonardo, deve ter ouvido alguns mais lá fora. Isso se não levou um puxão de orelha de brinde. Fiquei feliz, por um momento, de o futuro ser do Leonardo -- mesmo com aquela tatuagem -- e não da Dona Maricota. Porque as Donas Maricotas já não são mais as mesmas.

E digo, um tanto decepcionada: não creiam mais em mães virgens e em vós bem-educadas.

domingo, 4 de maio de 2008

O Show da Fé

Um texto não-gonzo...

Lá de cima, os grandes holofotes iludem os olhos. Fazem crer no verde reluzente como quadros de Monet. Os milhares que rodeiam a grande relva urbana nada sabem sobre arte impressionista, mas conhecem o valor daquele gramado milimetricamente dividido em dois tons. O espaço é sagrado. Sabem que no verde só os escolhidos pisam, e aguardam ansiosos os pés que ali tocarão.

Lá de baixo, olham para cima e sequer reparam no verde mal cuidado misturado ao marrom do barro malcheiroso. São milhares de pessoas que se esmagam na ponta dos pés, numa tentativa desumana de enxergar entre cabeças. Dali a pouco, alguém terá para si todos os olhos e ouvidos estendidos ao longo da orla, mas ninguém colocará tão cedo os pés no lugar sagrado. Apenas tentarão alcançá-lo com as mãos. É o Show da Fé.

No Beira-Rio, o show se chama Gauchão. Aqui, o inimigo vem das bandas serranas e traz consigo adoradores com os mesmos decibéis. Um oleleô, um vaitomanocu, algumas palavras fétidas e alguns Us soltos em hora inconscientemente combinada. Tudo sai das bocas com sotaques diferentes em cada lado da arquibancada. Tapo os ouvidos, finjo acreditar que o show está lá embaixo. Na arena, vinte e dois com ares estúpidos se degladiam pelo objeto rotundo do desejo.

Na beira do rio, a poucos metros na direção norte do mar vermelho, não se tem inimigos. A paz reina nos corações e as palavras são de amor. Aqui, são todos irmãos. Vêm apertados em ônibus lotados do litoral, da serra, da fronteira ou da terra de ninguém. Mas entre eles não há diferenças. São todos filhos de um mesmo pai. Todos crêem na mesma coisa, e não lhes importa se nisso há alguma razão.

Nas arquibancadas, a fé também vem do berço. É-se vermelho desde o batismo, sem direito a protestar. O quatro-três-três, o quadrado mágico, o losango fantástico, tudo pode dar errado, levá-los à segunda, terceira, quarta divisão. Ninguém, no entanto, sob qualquer resultado, ousa trocar a cor do manto sagrado. Se trocassem, o homem que se descabela num canto e solta gemidos seria o culpado. As pernas ameaçam invadir o campo numa tentativa inútil de salvar sua desgraçada tática. O jogo do técnico pode torná-lo o Cristo. Quando do contrário, é o Lúcifer logo demitido do paraíso.

Seres vestidos de azul são múmias que sussurram e distribuem o caminho para o céu. São papéis com listrinhas pretas, códigos de barras. Um deles pára na minha mão como milagre. Aqui, ao contrário do outro show, paga-se na saída. “Sejam acionistas de Deus”, clama um Pastor de voz galante. Tem pinta de artista de cinema para o qual ninguém protesta. Um Richard Gere capaz de seduzir homens e mulheres e de levá-los, literalmente, ao paraíso. Ele está sempre certo, não importa a tática. O pastor dá as ordens que lhe convém às ovelhas desgarradas. “Ponham a mão na cabeça”, confunde-as com macacos. “Sai, sai, sai!”, gritam com ele as mãos que espantam o diabo. Depois, elas se dirigem para o céu azul que os sobrepõe e cantam.

A cor do céu é a mesma do sangue, assim como dos mantos que mais da metade do estádio carrega no corpo. Alguns fiéis ainda reforçam a crença com panos quilométricos abertos de cima a baixo sobre as cabeças. Parecem não se importar com a pouca visibilidade dos santos de chuteira. Pulam sem parar. Agarram todas as mãos. Tornam impossível a qualquer um assistir ao jogo sem oscilações. É um sobe e desce sem qualquer temor dos muitos metros abaixo na arquibancada. É um depósito inabalável de fé.

A mistura de mãe-colorada-católica-não-praticante e pai-gremista-luterano-não-praticante resulta em filhos apáticos a qualquer fanatismo. Eu não tenho santos nas mãos, nem cara de compreensão. Sinto que me olham de revesgueio. Embora venha d’outro mundo, a energia causa um barato sem contra-indicações. Lembro do que dizem: gente de fé é gente que não faz terapia. Não custa tentar.

O espetáculo esportivo chega a ser bonito. Algo um tanto balé, um tanto batalha. Algo entre palco e arena. Notas regidas pelo maestro auto-escabelado atrás da linha branca. Decadente é o espetáculo do mar vermelho revoltoso, em completa desarmonia consigo mesmo. Mal sabem os vinte e dois sagrados que dividem o próprio show. Já faço parte dele, já grito, já vibro por uma religião que agora é minha. Sinto a vibração dúbia, que pode aumentar ou diminuir minha racionalidade.

O espetáculo parece irracional. As mãos abestalhadas batem no ritmo das canções divinas, nas quais onze entre dez palavras são o nome do Homem que rege tudo aquilo. Eles dançam como minhocas lânguidas e fazem coreografias toscas e sem sincronia. Uma tia gorda fecha os olhos e faz cara de choro logo em frente. As palmas das mãos viradas para o alto esperam a bênção prometida, ou talvez um milagre que caia do céu. Como ela, há muitos. É um concurso de teatro dramático. Quem mais sofrer pelo Homem será o vencedor.

Fingir sofrimento na frente do Homem pode convencer. Aqui, o Homem é chamado juiz, mas seu juízo não é unânime. É o deus de apenas um dos lados. Precisa decidir por qual deles quer ser odiado. O outro, que se dane.

Já no galante da voz sedutora, acredita-se de olhos fechados e braços pra cima. O candidato mais esperto sabe disso. Ele sobe ao palco e solta duas frases bem construídas e uma graça aos céus, que lhe garantem milhares de votos nas próximas eleições. Em volta do grande palco, as pernas cansadas tentam se manter, mas não se entregam. Braços e cabeças vão ao alto, cantam e gritam...

GOOOOLLL!!! brada o radialista concomitantemente ao uivo da torcida. Em uníssono, o homem se esquece de ser homem. A razão dá lugar ao pathos irracional. Não há mais ninguém em torno, não há mais prudência. Os olhos são seguidores incansáveis de um único ponto. No campo, as pernas correm paralelas. Enredam-se, costuram-se, esquecem-se do que rola em frente. Miram o inimigo, miram a bola. Dane-se a bola. Já sou algo entre homem e macaco, é o que pensam. O objetivo agora são canelas. Caem, esfolam-se, um rola, faz cara tragédia grega. A torcida vibra. O cartão amarelo sob a cabeça do juiz tem efeito imediato sobre o vasto léxico da torcida. Protestam, clamam, sofrem, é questão de honra.

É questão de classificação, de alcançar o objetivo. O lugar no céu depende do fanatismo desvairado. O ídolo sente a adoração e faz direitinho seu trabalho. Joga conforme o time, dança conforme a música. O placar marca sucesso. Agora só resta a final. O final. Aí, então, estarão todos no paraíso.

...e retardatário, já que o vermelho já está no paraíso.

sábado, 3 de maio de 2008

Felicidade Relativa

Mais do que qualquer coisa, o grande mistério do mundo está na compreensão da felicidade alheia. O que é razão para seus prazeres insensatos não necessariamente é a outrem. Uma singular convenção diz, no entanto, que se você não seguir padrões, não há de ser feliz nunca. Por que a felicidade de todo mundo tem de ser igual, afinal?

Tudo deu-se numa dessas conversas de bar, nas quais sou participante passiva. Passivíssima, com o perdão do neo-superlativo. Sou grande apreciadora de conversas de bar, de escritório, de faculdade, de sarjeta. Contanto que se tratem de bons papos, lá estão meu bom ouvido e minha abençoada paciência. A boca, no entanto, engata por vezes, e timidamente, na primeira –- e volta logo ao ponto morto.

Um novo amigo teve a sorte, ou não, de conhecer minhas características de gente estranha ao mundo convencional. A pauta da noite, como já estou acostumada há mais de vinte anos, foi a minha vida de menina careta. “Eu não como carne”, foi o ponto de partida à discussão calorosa, seguida de um “também não bebo”. “Mas então tu não és feliz!”, foi o que me disseram. É o que me dizem há mais de vinte anos.

É de se pensar, óquei, se a pessoa que se conheceu há alguns minutos é ou não feliz sem o prazer das coisas que nos dão tanto prazer. Se (é o que eles dizem) é-se feliz sem ter no estômago um boi a altos níveis etílicos. Eu pensaria o mesmo de um ser incrivelmente peculiar que nunca tivesse provado o doce sabor da vida –- o chocolate, quero dizer. Mas eu lhes garanti: “sim, juro que sou feliz sem o boi ou a cevada”.

Há o que me faça rir e falar bobagem sem qualquer teor alcoólico. Ou o que satisfaça minha fome sem o sangue de outras espécies. Mas entendo perfeitamente quem precisa disso pra viver, assim como eu preciso do chocolate. E entendo perfeitamente –- e gosto também –- quem solta com facildade a língua em conversas de bar. Eu não consigo, mas ouvir, eu garanto, me dá uma felicidade inenarrável.

Existe gente feliz sem religião, assim como creio serem felizes os monges que passam os dias a rezar. Há quem seja feliz trabalhando ou fazendo nada a vida inteira. Há até quem diga que é feliz estudando matemática (nossa!). Só não creio que haja felicidade em quem não permite que outros o sejam.

Nada de bifes, cervejas ou verbosidade em bar. Tenho certeza que nada me faria mais feliz que uma boa companhia, a palavra final de um livro ou um banho de chuva. Além de ouvir. E só ouvir.