segunda-feira, 31 de março de 2008

Sobre bancos, barrigas e dilemas.

Sempre cuido com os bancos vermelhos. Os apavorantes bancos rubros do ônibus, que piscam como sinaleiras em alerta. São eles destinados a pessoas com deficiência, a vovós e a futuras mamães. Preferenciais, é o que dizem. Já eu, prefiro não os preferir. Por isso, fujo dos bancos vermelhos.

Os bancos

De um lado, uma simpática senhorinha desfrutava de seu lugar à janela sobre o banco azul. Do outro, ninguém sobre os vermelhos. Não hesitei em acomodar-me ao lado na senhorinha, apesar de gostar de janelas. Da universidade à minha casa, são trinta minutos e a maior avenida da cidade a percorrer. Trinta minutos de sufoco sob o sol do meio-dia. A não ser que você consiga um banco azul. Era o que eu pensava.

O grande problema dos bancos vermelhos é precisar ceder o lugar às pessoas a quem eles se destinam. Mas, para pessoas de bom-senso, o adágio vale a todas as cores. O problema é saber a quem ceder o lugar. Que são a deficientes, vovós e gravidas eu sei. Mas quem são eles? É sempre um dilema saber se oferecer o lugar é respeito ao mais velho ou chamar o outro de velho. Mas o dilema, no meu caso, foi muito mais grave. Gravíssimo. Diria até: gravidíssimo!

A barriga, faltando uns oito décimos da avenida.

A menina – devia ter uns vinte e poucos anos – adentrou o ônibus. O coletivo estava lotado e sufocante, e eu ao lado da senhorinha com meus fones. A menina, que, afinal, não era idosa, não deveria ser uma ameaça, não fosse por um ligeiro detalhe. A barriga. Ela tinha uma longa e rotunda barriga, dessas não-identificáveis, dessas que não se sabe se tratar de bebê ou de beber. E ela parou do meu lado. Não tinha cara de grávida, mas tinha barriga.

O dilema, aos sete décimos que me restavam.

Se eu perguntasse à moça se queria sentar, demonstraria minha gentileza. Poderia, no entanto, também demonstrar minha grosseria ou, no mínimo, minha ignorância frente a barrigas. E, em vez de uma constrangida - no caso, eu -, seriam duas - eu e ela. Eu segurava o material de outra menina e, mesmo assim, parecia a mais insensível das criaturas. O ônibus lotava, a barriga me empurrava, e eu rezava. E, quanto mais eu rezava para chegar - ao meu destino ou ao dela -, mais demorava.

Seis décimos

Cheguei à Puc. Em outro dia, aquele seria meu destino. Naquele, porém, não era. Mais gente sobe. Ninguém desce. Comecei a sentir um enjôo, uma tontura, uma coisa parecida com culpa. Parecia-me que todos me olhavam e me condenavam. Condenavam minha bunda preguiçosa que não cedia em favor da barriga enigmática. Mas não havia que fazer. Não poderia ceder, mesmo porque a lotação, que causa a impossibilidade de qualquer movimento, não permitia que trocasse de lugar com a possível gestante.

Cinco décimos: a metade.

Tirei os fones e assim fiquei, pedindo socorro para chegar logo e fingindo não ver a barriga que quase roçava meu nariz.

Quatro...

... três décimos.


Nem a tortura, nem a censura, nem o irmão do Henfil ou as lágrimas de Marias e Clarisses. Nada naquele momento me fez sentir tanta ojeriza pela classe militar. Nada me fez odiar tanto, naquele espaço de tempo, a infeliz idéia, de um infeliz regime, de construir um infeliz campus universitário distante de tudo. Brilhante criação para evitar revoltas estudantis. Os revoltados, agora, são os estudantes do século vinte e um, que precisam chegar à fronteira com a cidade vizinha às sete e meia da manhã. E eu, chegar viva pro almoço.

Dois

Eu sofria. Por mim e por ela. Sim, porque ela sofria. Se ali havia um bebê ou uma melancia não importava. Ela sofria, eu sei. A música já não me salvava de qualquer murmuro dos censores passageiros. A minha chance seria ela saltar do coletivo antes de mim, mas nada. A do material que estava comigo desceu, ela não. Bendita suposta grávida!

Um


Mais alguns metros e uma parte da outra avenida. Esquivei-me para deixar o lugar. A menina se apoderou do banco com uma visível felicidade. Estávamos sãs e salvas. Ela, no banco azul. Eu, em casa e cheia de culpa. Devia ter perguntado o que ela tinha na barriga...

segunda-feira, 24 de março de 2008

O dúbio som do desespero

Alguma coisa acontece em algum espaço longínquo e ignoto. Uma dor, um suspiro, uma mão no peito e uma voz que clama. Ela tenta evitar a dor com as mãos que procuram apoio, enquanto alguém lhe afaga a alma com palavras de conforto. Quando já no chão, ela ouve o som que lhe afrouxa o peito: uóooo-uóooo!!!!

Em minutos, talvez segundos, a sirene soante rasga a cidade como um foguete. Contorna obstáculos com um poder inabalável que só as viaturas alvas têm. São carros de um lado para outro da larga avenida que, por centímetros, não se chocam na tentativa de ceder o passo. São pessoas que se questionam sabendo que não terão resposta. O grande carro branco da cruz de sangue leva já o agonizante sujeito?

Nesse meio tempo, nesse meio caminho entre a origem e o destino da ambulância, encontro-me. Estou lá, a caminhar no meu já costumeiro estado quase ausente de mim mesma, quando o ouvido se deixa tocar pela ressoante canção do desespero. Sinto uma ponta de desconforto no peito e, tal como o objeto alvo da ambulância, coloco nele a mão e procuro porto seguro.

A música desafinada, regida pela partitura de carros que se cruzam e sobem calçadas, me dá uma dor pungente. Acompanho todo o percurso da famigerada até perdê-la de vista. Torço em silêncio para que o tempo não corra mais que ela, e rezo uma reza qualquer de gente sem religião. Os dedos podem contar quantas vezes já sentiram sofrimento semelhante à da visão da cruz vermelha.

Continuo uma prece sem qualquer origem ou doutrina. Solto um sorriso aliviado. A essa altura, um coração voltou a bater e vários corpos recuperaram a alma. E, descobri, o dúbio som do desespero, que traz sofrimento e alívio, é o único capaz de salvar todas as almas.


terça-feira, 18 de março de 2008

Das carrancas e carrancudas da vida

Nos meus áureos tempos pueris, minha casa, que nunca foi das mais tradicionais, abrigava uma carranca* sob a escada. Era daquelas carrancas bem feias mesmo, vermelha e de grandes dentes, que encarava de pronto quem em nosso refúgio se atrevesse a entrar. “Para evitar maus espíritos”, era o que dizia minha mãe. Lá em casa, sempre tivemos aversão a esses “maus espíritos” e apatia por qualquer coisa que os apartasse. Incensos, pêndulos, muito sol e ar fresco e, claro, carrancas.

Pois bem. Nunca ninguém temeu ou fez qualquer sinal de iminente escarcéu ao ver, pela primeira vez, o sorriso um tanto macabro da nossa amiga. Ela até merecia certa simpatia de nossa parte. Não a ponto de lhe darmos nome (outro costume da família, também nada tradicional), mas era queridíssima por todos. Ou quase todos.

Uma só pessoa demonstrou aversão à presença da nossa protetora. Um amigo de minha mãe sentia-se misteriosamente incomodado quando convidado a sentar no sofá adjacente à escada. Não gostava dela e fazia questão de deixar clara sua antipatia, chegando ao ponto de sugerir que a colocássemos no lixo. Pois o sujeito – ou melhor, o espírito do sujeito - foi descoberto, tempos depois, como de má índole. Um “mau espírito”, portanto. E descobrimos que a carranca fazia jus a sua função, até ser perdida pela grande revolução causada por uma reforma arquitetônica.

Desde então, acredito nessa coisa de energia. Qualquer roupa que eu vista, qualquer lugar a que eu vá, qualquer situação em que me ponha, penso na tal da energia. Mas eu penso nela sobretudo quando conheço pessoas. E nela tenho pensado muito nesses tempos. Porque sempre há gente com aquela perene cara de insatisfação, com aquele ar fastidioso, cuja vida parece estagnada em dias de pé esquerdo.

Digo isso porque, já há algum tempo, conheci uma menina, bonita que é uma coisa. Tem daquelas belezas de dar inveja a outras meninas e de deixar babões os meninos. Mas, embora a beleza em qualquer forma – mesmo a que me cause inveja – me faça um bem danado, a dela me tem sido desagradável ao quadrado. É que, na dita, nunca sequer vi um sorriso, uma palavra boa, um gesto sensível. Ouso dizer que aquela boca que só faz soltar resmungos sequer um dia já sorriu.

“Espírito negativíssimo o dela”, diria a minha mãe. Dessas energias tão negativas que passam pra gente em transmissão direta e sem paradas no caminho. E, como ainda estou tentando descobrir como fazer o processo reverso, do pólo positivo ao negativo, dei uma de carranca e mandei-a embora da minha vidinha de belezas bem mais aparentes.

Mas, se alguém souber onde há, quero outra carranca. Sua eficiência já foi comprovada.

*21/03: Bueno, aí está uma foto da dita. Ela até sorri! Simpatissíssima!



segunda-feira, 17 de março de 2008

Carona pro norte

O que não falta é informação inútil nesse mundo, parafraseando a própria reportagem que li. “Um mapa da ilha de Lost”, é a origem da minha tragédia de hoje. Foi assim: abri um famigerado e respeitadíssimo site noticioso e vi aquilo que já vos falei. O tal do mapa. Já não duvido de mais nada, nadinha mesmo, nesse mundo informado e deformado.

Quem há de querer saber onde queda a Estátua de 4 Dedos ou o Cockpit do Vôo 815 Oceanic (e ainda saber que raios é isso)? Pior é que tem gente que quer (e sabe que raios é a coisa). Os lostmaníacos, tais como os maníacos de todo gênero, não se contentam com o objetivo da diversão pura e saudável. Há que saber da “unha encravada do Desmond até as pontas duplas do cabelo do Sawyer” (tá escrito lá!). Não sei quem é Desmond nem a moça de pontas duplas (porque só moças têm pontas duplas, ora!) e nem quero saber.

O mundo está perdidão, as pessoas estão perdidonas e ninguém mais sabe pr’onde ir, e há gente ainda querendo dar barato no cusco, em vez de tirá-lo da procissão. Tem quem não tenha emprego, futuro, vida!, e está preocupadíssimo com os perdidos na ilha deserta e com os “heróis” trancafiados na "casa mais vigiada do Brasil”, Bial.

Eu querendo mapa que me guie por aqui mesmo, nesse mundo já tão grande e tão real. Que me diga pra onde ir quando estou perdida – digamos, sempre – nesse caminho cheio de bifurcações, buracos e atalhos, e tem gente querendo seguir o coelho da Alice. Será que já se acharam por aqui ou desistiram de procurar o caminho?
Talvez mapas e bússolas não faltem. Falta mesmo achar o tal norte.

sábado, 8 de março de 2008

Prefiro sem venezianas

Eu estava sentada no ônibus, um sol danado a queimar a retina e um Chico a tocar os ouvidos e o coração. Como de costume, os olhos acompanhavam a rotina ruidosa daquele fim de tarde porto-alegrês. Iam pra lá e pra cá numa louca busca pelo conhecimento da vida alheia, dentro e fora do âmbito apertado do coletivo. Lá, viam senhores cansados numa tentativa de voltar ao lar com seus carros. Cá, gente de todo o gênero apertada em espaços desumanos.

Daqueles muitos, detive-me em dois, apenas. O que diziam era abafado em parte pelo ronco do ônibus, em parte pela melodia d’O Velho Francisco. Não ouvia, portanto, o que os dois rapazes falavam à frente. E, como não sabia ler lábios, continuei sem saber o motivo que os levava a se mexerem, ora um, ora outro, num vaivém incansável de intenções silábicas. Mas também não queria saber se os engravatados falavam da iminente Brahma gelada ou da boazuda do escritório. Só sei que alguma coisa neles me causava uma curiosidade desconfortante.

Se me perguntassem, na ocasião, o porquê dessa constatação, não saberia responder. E continuei longo tempo sem saber. Só depois – mas isso bem depois mesmo – dei por conta do quanto as impressões enraizadas podem nos influenciar sem percebermos. Explicar-me-ei. Dado o fato de que alguma coisa nos incomoda, de tanto nos incomodar, chega o tempo em que já não notamos sua presença, já que se mistura àquilo tão costumeiro. Passa despercebida. Não sabemos por que a situação tão incômoda é, afinal, tão incômoda. Até descobrirmos que o estado seria outro, não fosse a presença de um essencial elemento.

Fiz uma brevíssima análise física e psicológica dos sujeitos em questão. Pareciam boa gente, tinham barba feita e até passavam por bonitões. Os botões das camisas pareciam colocados com cautela nas respectivas casas, e as gravatas estava bem atada. Os gestos eram leves e até pareciam sorrir com grandes dentes alvos. Enfim, ambos encontravam-se dentro das perspectivas perfeccionistas de uma virginiana convicta. Nada de errado, pois.

Mas, não. Alguma coisa ainda incomodava. E muito, mas muito depois, entendi que a profunda aversão que sentira estava no rosto daqueles dois. Não na expressão mas, ao contrário, na falta dela. O que me deixava contrariada naqueles dois estranhos era – riam – os óculos. Os óculos escuros, negros até não poderem mais, tapavam por completo duas faces que tornaram-se, então, inexpressivas. Incomodava-me pensar, até então inconscientemente – se é que isso faz algum sentido – que ambos conversavam, um a olhar para o outro, de óculos. Um suposto e enganoso olhar, é claro, já que me parecia impossível que vissem um ao outro com aquelas enormes vendas pretas. Não que eu tivesse algo a ver com isso, com a vida e com os olhar trocado pelos dois, mas lembrei de meus traumas e esquisitices.

Os óculos, tema de seguidas interrupções de minha parte nas conversas, me incomodam seriamente. Eu paro tudo, desde a maior frivolidade até o mais profundo pensamento crítico do meu interlocutor, só para pedir-lhe que me deixe ver seus olhos. Essa tal “janela da alma” é literalmente traduzida por mim e, assim como as janelas de casa, prefiro que não tenham venezianas. Creio que tê-las abertas me parece um convite amigável a entrar.

* Óquei. Penso em comprar um óculos escuros – coisa que nunca tive – mas prometo usá-lo só para não queimar a retina no ônibus.


**Foto: Caminito de Buenos Aires por Liza, a futura companheira de morada portenha.

segunda-feira, 3 de março de 2008

A arte de ser feminina

Tenho me estranhado nos últimos tempos. Já não sou o que era. E pior, só sobrou em mim - salvo algumas exceções - aquilo que não queria mais ser. E, pior ainda!, tenho sido tudo quanto criticava, tudo onde prometera nunca chegar. Terrível!... Mas, enfim, tudo isso pra dizer que fui ao cabeleireiro. É, dessas coisas que parecem tão comuns a meninas/mulheres da minha idade. Para mim, como não é difícil perceber logo de cara, qualquer coisa relacionada a cabelos, pés e mãos e coisas sem relação a cérebro e coração, são perda de tempo precioso. Minha vaidade se resume ao cabeleireiro umas três vezes por ano e à manicure umas duas.

De repente, no entanto, vi-me sentada na cadeira do cabeleireiro. Em frente, uma pilha de Caras. Na minha mão, uma Cabelos&Cia, que - juro! - não sei como foi parar ali. Numa tentativa de não parecer cult demais naquele ambiente sem propósito de ser, ignorei o livro na minha bolsa e parti pro “tá na chuva é pra se molhar”. É... ali certamente ninguém me julgaria por ler Cabelos&Cia. Admirei, durante quarenta e cinco minutos, os cabelos e os textos de Cabelos&Cia (só não sei ainda dizer qual me impressionou mais: o cabelo ou o texto). Recomendo, para momentos sabáticos. Para completar minha dose de futilidade diária, abri a Caras “O melhor do Oscar”, para comprovar a tese de uma amiga de que é preciso muito talento para escrever muito sobre nada. Comprovado, minha cara.

Passado o momento de estranha no ninho, cusco em tiroteio, aquela coisa, até que me adaptei. Assustei-me com tal comprovação e me assusto com o que acabei de escrever. “Adaptei-me”? To doida! Há não muito tempo diria “credo!”, mas o momento ocioso com pitadas de cafuné durante duas horas me fizeram, estranhamente, um bem danado. Eu bem que estava precisando fazer nada, além de conversar sem compromisso com um simpático cabeleireiro/a e olhar gente bonita na Caras.

Mas, se uma coisa eu agora sei, mais que o nome de todas as estrelas de Hollywood (e estilistas de) e de “como hidratar seu permanente”, é que ser feminina é uma arte. Ser madame de salão de beleza, então, é difícil pacas. Requer concentração, simpatia em dose antibiótica e muito colóquio frívolo pra trocar durante horas a fio. Sem falar na paciência com aquilo chamado "homem", que nunca repara no resultado do seu esforço.
Assim, como experiência singular, não foi difícil. Durante duas horas, fui feminina com uma classe admirável, não posso negar. Mas pra chegar à feminilidade a nível madame, e em tempo integral, eu precisaria de muito treino, já que talento me falta. Mas, não. Nada de treinos, nada de salão, nada de frescuras. Essa confissão sem vaidades faz parte do processo de cura. Já me sinto melhor, até.

Receita


Entrei numa onda aí bem interessante - ou melhor, sopa. A tal de Sopa de Letras, uma proposta bem legal, com blogs bem legais de colegas bem legais. Enfim, é legal dar uma olhada.

Agora só falta essa que vos fala botar a mão na massa e atualizar suas nuanças.


Clique aqui para conferir.