sábado, 7 de junho de 2008

Severino e os Sapatos *

Severino contrariava a alcunha que lhe deram. A personalidade parecia abreviada nos olhos cor celeste, dados pela mesma mãe que escolheu chamar-lhe assim. Severino. Severo, lhe diziam. Preferia acreditar que lhe fora dado por razão do peixe homônimo, já que a genitora desconhecida que lhe havia registrado não lhe possibilitaria saber a razão. Nem se herdara os olhos dela ou do pai, também ignoto. Chegou naquela várzea distante quando muito pequeno. Tanto que não se lembrava. Vivia há muito tempo no lugar talvez esquecido pelo mesmo Deus a quem a mãe, mulata de olhos negros, fazia rezas.

Era um daqueles dias em que as nucas ferviam e sequer podiam ser salvas pelas sombras das poucas árvores. Pois as poucas árvores também tinham poucas folhas. A representação daquele mundo de pouco tudo, exceto pelo calor. O calor era a única coisa que se tinha de muito. Tudo queimava igual ao dia em que Severino tocara a mão no forno à lenha da mãe. Não por personalidade pirraça, já que tinha os olhos azuis. Somente por ser criança.

Tudo estava quente. Mas a areia que lhe tocava os pés não ardia. Não ardia porque Severino estava já acostumado aos pés desnudos sobre a terra torrada.

Nunca usara sapatos. Na verdade, sequer já os vira. Não até aquela tarde escaldante — mais uma entre muitas, mas que lhe pareceu ainda mais abrasadora. Podia mostrar conhecer muito da vida áspera — embora limitada em tempo e espaço. Conhecia os tons daquela terra, os temperos da cozinha, a direção dos ventos e até as palavras mais grosseiras dos homens mais xucros. Sabia que amanhã choveria, pois estava quente. Mas não conhecia aniversário, Natal e sapatos. Não até aquela tarde.

Naquele universo vermelho e cansado, não havia lugar para o supérfluo. Ali só havia essência. E a essência não inclui sapatos.

Embora estivesse quente, Severino preferiu ficar na varanda, onde a madeira passada parecia aquecer ainda mais o mundo. Sobre os joelhos, os cotovelos. Sobre estes, as mãos, que seguravam uma cabeça cansada de estar. Estar ali, sem nada. Sem vontade. Sem sapato.

Neste dia veio um homem, coisa que ali nunca vinha. Um magro de cabelos cinzas e roupas de cidade. Com apenas um olhar lhe cumprimentou inutilmente, pois nessa hora Severino não via olhos. Via sapatos. Marrons brilhosos que contrastavam com o marrom fosco da madeira e que atravessaram a varanda que rangia como patos. Entrou pela porta que ainda mais gritava, e lá dentro a mãe o recebeu.

O garoto não se movia, tais como os olhos de cimento, que ofereciam sua atenção aos ouvidos curiosos. Inútil tentativa. Escutava tão somente murmúrios. O sol fez o desenho das sombras da varanda se derreterem, até que alcançaram a parede. Foi quando então ouviu a voz rija dizer:

— Severino.

Sabia seu nome o homem de cidade. O homem cinza de sapatos marrons. Um estranho naquele mundo vermelho.

E novamente ouviu:

— Severino.

Agora vindo da voz terna daquela mãe mulata. Agora um chamado.

Entrou com a curiosidade tímida que não lhe permitia correr. A timidez que também não deixou que ele falasse enquanto as bocas da mãe e do homem se revezavam. Foi assim que alguma das vozes — que já não poderia dizer qual — revelou-lhe que era aquele seu padrasto.

O pai morrera e a mãe casara-se novamente. O homem cinza que não tivera filhos encontrara na descoberta da existência de Severino um consolo. Um filho. A mãe lhe revelara onde deixara o embrulho choroso havia anos.

Severino tremeu. Soluçou de susto. Um soluço rápido que só serve para seguir-se de um alívio de prazer. Um deleite maior quando o menino da vista azul e pés rubros soube que o padrasto queria um herdeiro. Tinha aquilo que chamava negócio. Uma loja. “A casa das sombrinhas”. Não sabia o que eram sombrinhas sob aquele céu ingrato que não dá chuva. Mas não importava o nome, já que nem sempre nomes são fiéis. Severino dos olhos azuis sabia disso.

A loja vendia sapatos.

E Severino ver-se-ia, enfim, livre da vida severa e descalça.


* sim, Severino é meu avô, embora a história seja muito pouco fiel à verdadeira.

10 comentários:

Anônimo disse...

Luana, tu poderias escrever um livro de contos. Escreves muito bem. Consegues prender a atenção do leitor e teus textos tem um tanto de magia e poesia que encantam. Parabéns!!!

Rô Peixoto disse...

Achei o começo um pouco confuso... mas quem dá bola, tendo um final tão lindo??

Anônimo disse...

Que texto legal de ler...
Prendeu minha atenção o tempo inteiro.

beijos

Anônimo disse...

pensei cá com meus botões hoje pela manhã: qual seria a diferença entre um tons e um entretons no blog da Luana?

Anônimo disse...

Bah, mtu bom o teu conto pra cadeira do Necchi. Adorei a história do "nunca usara sapatos", me lembrou um pouco do cara que nunca tinha comido chocolate.

Bjos.

Anônimo disse...

Eu sei, o tempo urge e os trabalhos se complicam no final do semestre, mas se tu ficar sem atualizar teu blog é maldade...

Samir Oliveira disse...

Venho por meio desta (tentar) me redimir.

É incrível como tu conseguiu dimensionar o simples fato de um menino ganhar sapatos. Incrível! Mais fascinante é que um texto tão curto possa ser tão rico e completo.

por essas e outras que eu serei teu orientando em letras!

(ah, e nem passa lá pelo meu blog para não esbarrar nas teias de aranha)

Samir Oliveira disse...

Ah, dá um pulinho lá nas minhas teias para ver o vídeo da tia Cruses.

Anônimo disse...

sem palavras, querida.
adorei o contraste do azul celeste, com o marrom dos sapatos e o vermelho da terra. as cores prendem porque fazem imaginar... adorei!
bjinho

Anônimo disse...

ps. tem uma vírgula que não deveria estar ali...