sábado, 31 de maio de 2008

Um Artesão de Idéias

Talvez ele não estivesse ali, naquele beco apertado do Menino Deus. Ali, onde vive entre toras de madeira. Talvez ele estivesse agora em Londres, como passagem marcada para amanhã a Madri. Lá, entre a madeira trabalhada nos violinos e pianos das grandes óperas. Mas Seu Flávio, o marceneiro da vila Guaranha, prefere não cogitar o destino de sua vida se, aos 60 anos, o cigarro não tivesse apagado sua voz.

José Flávio da Conceição, marceneiro de profissão e cantor de ópera de dias passados, passa agora os dias a riscar em grandes cartolinas. Os bonitos armários, mesas, cadeiras, ou seja lá o que as madames de toda a cidade encomendem, saem dos desenhos um tanto tortos e sem muita perspectiva do marceneiro mais famoso da região. Mas são as mãos do filho e do neto que colocam em prática as obras do patriarca. As pernas de Seu Flávio já não permitem tanto esforço. Por isso ele desenha. Passa as tardes a planejar nos papéis amassados, sobre a mesa irregular na oficina apertada, com a astúcia de quem estudou desenho – que agora faz com as mãos mais inseguras – no Instituto de Bellas Artes. Um olho aqui e outro ali, no neto, que não herdou o talento vocal do avô. “Fala mais alto, guri!”. E resmunga: “Os guris de hoje não projetam mais a voz”.

Seu Flávio projeta a voz, agora já um pouco rouca, ainda como nos tempos de cantor. Faz questão de falar para ser ouvido. Pelos outros e por ele, que precisa espichar o corpo e pedir que os outros repitam. Mas se diz humilde, só fala o que deve. “Não tenho a vaidade de dizer o que eu sei. Vou dizer o que eu sei quando tu me perguntar”. É difícil imaginar que o homem de 77 anos, de sobrancelhas rudes e pés ásperos, já brilhou nos palcos mais aplaudidos do mundo. Que as mãos machucadas pela serragem já flutuaram no ritmo da música clássica. No lugar das roupas surradas e da boina, quase do tom cinza dos cabelos, já esteve uma indumentária de barítono-tenor. “Sou um dos quatro únicos no mundo que alcançam esses dois tons. Vou do Sol ao Dó num segundo”. Mas, hoje, os 37% de ar que retém, graças a um enfisema pulmonar, não deixam que ele respire o ar necessário para fazer uma cadeira, quanto menos para fazer um espetáculo.

Um dia, quando cantava na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, “faz uns 50 anos”, foi convidado para cantar na Inglaterra. “Mas lá não é como aqui. Ninguém pára para dar informação, ainda mais pra mim que não sabia uma palavra de inglês”. Conheceu a terra da rainha, a Espanha, a Itália, e mais um tanto de países que nem lembra. Dos irmãos latino-americanos, só contemplou de passagem o Paraguai, para onde foi comprar uma tevê. Mas nem sem palco deixou de cantar. E, assim como lhe acontece seguidamente nos bares do Menino Deus, foi convidado a soltar a voz num bar. Num espanhol convincente agradou com “Anahí... las arpas dolientes hoy lloran arpegios que son para ti. Recuerdan acaso tu inmensa bravura, reina guaraní”. Fala um bom espanhol e canta em italiano, mas não substitui a boa música brasileira. “Eu sou muito verde e amarelo. Gosto é de cantar o hino nacional da música brasileira”, e cantarola, distraído, Aquarela do Brasil.

Mas foi no Brasil que perdeu a chance de sua vida: um contrato com o Teatro Scala de Milão. Era o prêmio do concurso “Voz de Ouro”. Na etapa do Rio de Janeiro, a música escolhida para agradar foi Rio, Caminho de Ouro. “Eles me adoraram!”. E venceu. Na final em Porto Alegre, um copo de água gelada pela manhã, que o impossibilitou de cantar, foi o suficiente para dar o primeiro lugar ao hoje famoso tenor Nino Valsani. “Se eu tivesse cantado, seria uma das maiores vozes desse país. Porque hoje em dia só tem porcaria, e eu to aqui sentado vendo essa porcaria”, resmunga, analisando a cantora Alcione no Domingão do Faustão, que “tem uma boa caixa de som, mas só canta porcaria”.

Confessa que a vida de cantor seria mais descansada, porque dependeria só dele mesmo. Mas, com uma felicidade de gente simples, garante não se arrepender de nada. “É uma carreira muito difícil a de cantor. Eu era jovem, bonito e muito assediado. Acho que sou mais feliz assim”. Mesmo porque, se quisesse, poderia ter voltado a cantar. Diz saber limpar o pulmão com óleo de capivara, mas ele fica muito frágil, sem resistência. Por isso, preferiu não seguir o exemplo de um amigo, que usou e morreu pneumonia no primeiro frio do inverno.

Adora ser marceneiro. Parece divertir-se tanto com música quanto com madeira, a qual calcula com o cuidado de um compositor para não perder nenhum centímetro no corte. “Sou um pesquisador da profissão, faço coisas inéditas. Faço um guarda-roupas de 30 portas sem dobradiças e que nunca entra cupim”. Mostra, orgulhoso, o invento desenhado na grande cartolina, cujo projeto nunca foi comprado por nenhuma loja, já que é uma peça quase interminável, “dura uns 200 anos”. Por isso ele mesmo, com um financiamento, vai investir na produção e venda do invento. Fará propaganda própria, garante, assim como já faz para vender às madames. A propaganda do trabalho de Seu Flávio é feita mesmo no boca-a-boca.

Seu conhecimento sobre a química da madeira, tão importante para a descoberta da imunização aos cupins, não vem de família, mas da época em que fez remédios. Assumiu o cargo quando o costume de beber derrubou o titular, farmacêutico de profissão formado na Alemanha. Como assistente, Seu Flávio conhecia todas as receitas e começou a fazer os remédios. Mas, embora bêbado, o farmacêutico nada tinha de burro, e sempre escondia alguns segredos de boticário. O resultado foram remédios voltando em larga escala e a quase-falência da farmácia, que foi obrigada a recontratar o alcoólatra.

O apartamento de três quartos de Seu Flávio é de uma beleza simplória. Logo na entrada, a porta de desenhos curvos e bem lixados não deixam dúvidas quanto à profissão do proprietário. Uma sala onde não cabe muito mais que dois sofás, uma mesa, também feita por ele, e uma estante. Sobre esta, fotos de crianças. Nenhuma delas de seus netos. Com Dona Eva, segunda esposa, não tem nenhum. “Mas somos protegidos por Cosme e Damião”, ela diz. As crianças estão sempre na casa. Filhas de vizinhos, filhas de amigos, filhas de ex-namoradas do filho. Seu Flávio não parece tão empolgado quanto a mulher quando se fala em filhos. Com ela, teve dois; com outra, dez, dos quais resultaram seus vinte e sete netos.

Os netos nunca deram problemas. O que trabalha na marcenaria tem dezessete anos. Os filhos estudaram; alguns, na universidade federal. Todos trabalham. Somente aquele a quem Seu Flávio deu o próprio nome parece não ser o seu orgulho. João Flávio trabalha com o pai. Converteu-se à Igreja Evangélica e agora diz que é filho de Deus, não mais de Seu Flávio. A marcenaria, onde antes cabiam armários e mobílias de todo o tipo, agora se resume a uma pequena ilha em meio a madeiras e lixo. Uma parte do teto, João arrancou para secar roupas. Em dias de vento e chuva, o local sofre com o dilúvio. E Seu Flávio, com o enfisema. Quando o pai ficou no hospital durante alguns meses, o filho abarrotou o local para esconder as máquinas e não perder a herança. Herança que daria ao novo pai: o pastor da igreja. Quando Seu Flávio teve alta, foi ameaçado de morte pelo filho. “Disse que ele não se atrevesse comigo, que eu cortava a garganta dele”, diz o dedo em riste e a cara de pai que dá a lição. Mas, como pai, também amolece. “Eu tenho é pena dele”.

Seu Flávio é ateu. “Eu só acredito no que eu vejo. É um atentado a minha inteligência”. A candura de menino e a dureza que os anos lhe deram lhe conferem um ar de controvérsia. Ama ou odeia as pessoas. Não tem meio termo. “As pessoas são boas, viu? Não sei se fui eu que plantei coisas boas e acabei encontrando só coisas boas”, é o que diz quando narra acontecimentos que diz guardar como “relíquias”, como o da mulher que o levou ao pronto-socorro quando seu pulmão teve mais uma recaída no meio da rua. A bem-feitora deu o número de seu telefone agregado ao 9090, para que ele ligasse a cobrar e ela o fosse buscar. Sempre que lhe falta ar na rua, um anjo lhe carrega para o hospital. Da Brigada Militar, localizada ao lado da vila, ele já perdeu as contas de quantas caronas ganhou. Mas quando o assunto é trabalho, gente ruim há aos montes. Tem quem já o tenha tentado roubar, quem não quisesse pagar, quem quisesse passá-lo para trás. Um deles, Seu Flávio ameaçou de morte. Muitos outros, já xingou sem pudores. “As pessoas têm que ser corretas comigo, senão, passo-lhe o laço. As únicas pessoas descentes são eu e o Velho João, um preto que vendia madeira”. Súbito, desune as sobrancelhas severas e solta uma lágrima que percorre a ruga alinhada abaixo do olho. Somente em outro momento solta lágrimas como para o Velho João. É quando recita a própria poesia – uma de muitas:

Um sábio me dizia que essa existência
Não vale a angústia de viver
Homens, eis o que somos neste mundo
Uma célula orgânica que aparece

Cresce, vibra e se dissolve num segundo

Eis a vida

Assim falou-me um sábio

E pela primeira vez eu comecei a ver

Dentro da própria morte

O encanto de morrer


“Agora vem a parte mais linda, o final”. É quando a lágrima enfim cai:


Uma mulher falou-me
Feche os olhos, meu amigo

E sonhe

Com uma doce companheira

Que muito a queiras

E que também te queira

Cortinas muito brancas na vidraça

Um passarinho que canta na gaiola

Que vida linda lá por dentro rola

Assim falou-me uma mulher

E pela primeira vez eu comecei a ver

Dentro da própria vida

O encanto de viver.


“É muito linda”, suspira.

Quando canta ou declama, mantém os olhos fixos no seu interlocutor. Parece exigir atenção. Nesse momento, esquece-se do ar que falta, das rabugices, de tudo em volta. É como se fizesse aquilo pela primeira vez, com um brilho de criança contente nos olhos. “Por que ele não é sempre assim?”, pergunta Dona Eva, acostumada a correr de um lado a outro da casa atrás do nebolizador que a salvará dos resmungos sufocantes do marido. Depois de quase meia hora com o tubo verde sobre o nariz e a boca, no entanto, já é mais sorridente e falante. É muito falante. “Ele não pára. Tá sempre falando, falando, falando”, ri Dona Eva.

Há alguns meses, Seu Flávio foi mandado pelos médicos para a psicóloga do hospital. Por quê? “Para encobrir a incapacidade deles, só pode!”. Dona Eva explica. É que o marido, já famoso no Hospital de Clínicas pela cantoria e pelos saraus poéticos em meio aos corredores, não conta para os médicos o que faz em casa. “Baixa o exu nele e ele quebra o nebolizador. Isso sem falar que vive esquecendo os remédios. Por isso, a doutora Marli quer que eu vá sempre junto para contar o que ele faz. É muito medonho. Me enlouquece. Por isso que eu digo que vou morrer antes dele”. Ele ri como criança travessa e acaricia a cabeça da mulher, com quem é casado há 36 anos.

Fora o pulmão, as pernas e o ouvido, tudo parece funcionar como se ainda tivesse os 50 anos da foto sobre a estante. Um filhote de onça se debruça sobre um Seu Flávio forte e bonitão, que lhe dá leite com uma mamadeira em algum lugar do Maranhão. Em casa, depois da meia hora inalando o soro fisiológico, ele parece voltar à forma e corre de uma peça à outra. Tudo parece funcionar. Na rua, se agarra com dificuldade às grades. “Mas se ele vê uma mulher, já melhora”, Dona Eva implica. Ele olha a tevê e finge não ouvir. Certa vez, quando, acompanhado da mulher, passava mal em frente ao Clínicas, uma vendedora de água não dispensou uma cantada ao setentão. Dona Eva nem liga, e ainda ri. “Se ela quiser tirar uma casquinha, pode”. Ele olha a tevê e finge não ouvir.

Seu Flávio parece não se arrepender de nada. Nem do copo de água gelada, nem do filho rebelde-evangélico. Mas os gestos firmes, o olhar firme, as mãos firmes e decididas, tornam-se instáveis quando fala do cigarro. Este sim, que o faz se agarrar em grades e sofrer em dias úmidos. O secretário da saúde do município, uma de suas muitas influências no mundo político, convidou-o para dar palestras contra o cigarro em colégios, já que ele falaria com conhecimento de causa. Como tudo o que faz, levou a sério a proposta e, com a responsabilidade de marceneiro que entrega encomendas na data, escreveu um monólogo para apresentar, mas o projeto nunca saiu do papel. “O prefeito não tem interesse nisso. Não daria uma boa propaganda”.

Da época de candidato a vereador em Viamão guardou amizades políticas. Da época de ascensorista, a cumplicidade de Leonel Brizola. Foi convidado por Lupicínio Rodrigues a cantar em São Paulo. Procópio Ferreira esqueceu de escrever o poema, e mandou o amigo Flávio em seu lugar. Tem amigos em todos os cantos. Conversa com todos, sem qualquer preconceito. No ônibus, pede licença e já inicia um diálogo. Faz questão de ressaltar seu diferencial. “Me comunico com as pessoas, por isso elas são legais comigo”.

As carreiras de cantor, ator, poeta, pai, avô, farmacêutico, político e marceneiro sempre foram levadas com responsabilidade. Se tem uma coisa de que ele se orgulha, é de ser responsável. Diz ter muita dedicação e respeito pelas pessoas. “Se a pessoa não vive pra servir, não serve pra viver” é o seu lema. Sabe que é daí que vem o grande respeito que lhe conferem desde o Lupicínio até o Luciano, um ajudante com problemas mentais, “mas de bom coração”. Orgulha-se disso mais que da voz de barítono-tenor. Por isso, prefere estar ali, entre a madeira bruta na vila Guaranha.

3 comentários:

Anônimo disse...

Bem legal. Teus olhos de repórter e de escritora estão presentes nesse texto.

beijo

Rô Peixoto disse...

Tu e o Samir tem o dom de encontrar pessoas incríveis. Dá vontade de conhecer esse Seu Flávio.

E tuas palavras, com certeza, deram um ar doce ao senhor rabugento.

Eliane! disse...

Mas que seu Flávio heim.
concordo com a Rô.

Luana, tu é uma das pessaos que ainda me faz acreditar no jornalimo.

como tu encotnra pessoas assim, heim?
;)