segunda-feira, 24 de março de 2008

O dúbio som do desespero

Alguma coisa acontece em algum espaço longínquo e ignoto. Uma dor, um suspiro, uma mão no peito e uma voz que clama. Ela tenta evitar a dor com as mãos que procuram apoio, enquanto alguém lhe afaga a alma com palavras de conforto. Quando já no chão, ela ouve o som que lhe afrouxa o peito: uóooo-uóooo!!!!

Em minutos, talvez segundos, a sirene soante rasga a cidade como um foguete. Contorna obstáculos com um poder inabalável que só as viaturas alvas têm. São carros de um lado para outro da larga avenida que, por centímetros, não se chocam na tentativa de ceder o passo. São pessoas que se questionam sabendo que não terão resposta. O grande carro branco da cruz de sangue leva já o agonizante sujeito?

Nesse meio tempo, nesse meio caminho entre a origem e o destino da ambulância, encontro-me. Estou lá, a caminhar no meu já costumeiro estado quase ausente de mim mesma, quando o ouvido se deixa tocar pela ressoante canção do desespero. Sinto uma ponta de desconforto no peito e, tal como o objeto alvo da ambulância, coloco nele a mão e procuro porto seguro.

A música desafinada, regida pela partitura de carros que se cruzam e sobem calçadas, me dá uma dor pungente. Acompanho todo o percurso da famigerada até perdê-la de vista. Torço em silêncio para que o tempo não corra mais que ela, e rezo uma reza qualquer de gente sem religião. Os dedos podem contar quantas vezes já sentiram sofrimento semelhante à da visão da cruz vermelha.

Continuo uma prece sem qualquer origem ou doutrina. Solto um sorriso aliviado. A essa altura, um coração voltou a bater e vários corpos recuperaram a alma. E, descobri, o dúbio som do desespero, que traz sofrimento e alívio, é o único capaz de salvar todas as almas.


12 comentários:

Samir Oliveira disse...

E tu ainda queria escrever que nem eu? Não enxugue teu talento, Luana! Um texto com tamanha subjetividade e tão acurado olhar sobre as coisas só pode ser feito por uma pessoa que tenha teu dom de fazer verdadeiros malabarismos com as palavras - e sem nunca deixar cair as sílabas. =P

Rô Peixoto disse...

Será que todo grande jornalista tem uma ponta literária no coração??

Anônimo disse...

uou! lindo texto.
um dia te conto porque o início do texto me lembrou um filme do wim wenders.

Eliane! disse...

Luana
teus textos são ótimos!essa tua capacidade de juntar palavras, formando frases e um texto tão belo, fazem nós, teus leitores, colocarmos a mão no peito e exclamar: como é bom ler algo assim, de alguém com tanto talento. Tu sabe fazer com que as pessoas tenham vontade de ler até o final, porque elas sabem que vale a pena.
beijos!!
:)

Anônimo disse...

"...e rezo uma reza qualquer de gente sem religião."
Lindo!

Carolina Tavaniello P. de Morais disse...

Nossa, quanta profundidade! Tu inseres muito bem a literatura nos textos!
Eu sempre me pergunto "o que será que aconteceu com a pessoa que está na ambulância ou que espera por ela", mas admito que não rezo. Talvez eu até o faça, mas inconscientemente.
Beijos!

Luana Duarte Fuentefria disse...

É, Carol, o negócio é inconsciente. Mesmo porque não sei muito além da primeira frase do Pai Nosso.

Rô, espero me encaixar nessa parte do "grande jornalista" algum dia.

Anônimo disse...

Fico cada vez mais teu fã, Luana! Sério, tu te puxa!
Quanto a minha monografia, acho que não vai te interessar. A princípio, é sobre influência da convergência midíatica nas coberturas jornalísticas.
Aposto um café que tu quer alguma coisa relacionada a jornalismo literário.

beijos

Liza Mello disse...

luana! bah, mto bom! ele é um pouco diferente dos textos q o pessoal (e eu me incluo) costuma fazer! mais subjetivo!
;)

Anônimo disse...

Luana, é a primeira vez que leio teu texto. Cheguei aqui pelo sopa! Adorei teu estilo. O texto é lindo e poético. Emociona! Grande abraço.

Liza Mello disse...

essa aí de cima é a minha mãe, caso tu fique em dúvida.
hehe

Gabriela Aerts disse...

Bah.. muito bom mesmo.
Gostei de mais.

Também fico desconfortável com esses furgões brancos...