sábado, 8 de março de 2008

Prefiro sem venezianas

Eu estava sentada no ônibus, um sol danado a queimar a retina e um Chico a tocar os ouvidos e o coração. Como de costume, os olhos acompanhavam a rotina ruidosa daquele fim de tarde porto-alegrês. Iam pra lá e pra cá numa louca busca pelo conhecimento da vida alheia, dentro e fora do âmbito apertado do coletivo. Lá, viam senhores cansados numa tentativa de voltar ao lar com seus carros. Cá, gente de todo o gênero apertada em espaços desumanos.

Daqueles muitos, detive-me em dois, apenas. O que diziam era abafado em parte pelo ronco do ônibus, em parte pela melodia d’O Velho Francisco. Não ouvia, portanto, o que os dois rapazes falavam à frente. E, como não sabia ler lábios, continuei sem saber o motivo que os levava a se mexerem, ora um, ora outro, num vaivém incansável de intenções silábicas. Mas também não queria saber se os engravatados falavam da iminente Brahma gelada ou da boazuda do escritório. Só sei que alguma coisa neles me causava uma curiosidade desconfortante.

Se me perguntassem, na ocasião, o porquê dessa constatação, não saberia responder. E continuei longo tempo sem saber. Só depois – mas isso bem depois mesmo – dei por conta do quanto as impressões enraizadas podem nos influenciar sem percebermos. Explicar-me-ei. Dado o fato de que alguma coisa nos incomoda, de tanto nos incomodar, chega o tempo em que já não notamos sua presença, já que se mistura àquilo tão costumeiro. Passa despercebida. Não sabemos por que a situação tão incômoda é, afinal, tão incômoda. Até descobrirmos que o estado seria outro, não fosse a presença de um essencial elemento.

Fiz uma brevíssima análise física e psicológica dos sujeitos em questão. Pareciam boa gente, tinham barba feita e até passavam por bonitões. Os botões das camisas pareciam colocados com cautela nas respectivas casas, e as gravatas estava bem atada. Os gestos eram leves e até pareciam sorrir com grandes dentes alvos. Enfim, ambos encontravam-se dentro das perspectivas perfeccionistas de uma virginiana convicta. Nada de errado, pois.

Mas, não. Alguma coisa ainda incomodava. E muito, mas muito depois, entendi que a profunda aversão que sentira estava no rosto daqueles dois. Não na expressão mas, ao contrário, na falta dela. O que me deixava contrariada naqueles dois estranhos era – riam – os óculos. Os óculos escuros, negros até não poderem mais, tapavam por completo duas faces que tornaram-se, então, inexpressivas. Incomodava-me pensar, até então inconscientemente – se é que isso faz algum sentido – que ambos conversavam, um a olhar para o outro, de óculos. Um suposto e enganoso olhar, é claro, já que me parecia impossível que vissem um ao outro com aquelas enormes vendas pretas. Não que eu tivesse algo a ver com isso, com a vida e com os olhar trocado pelos dois, mas lembrei de meus traumas e esquisitices.

Os óculos, tema de seguidas interrupções de minha parte nas conversas, me incomodam seriamente. Eu paro tudo, desde a maior frivolidade até o mais profundo pensamento crítico do meu interlocutor, só para pedir-lhe que me deixe ver seus olhos. Essa tal “janela da alma” é literalmente traduzida por mim e, assim como as janelas de casa, prefiro que não tenham venezianas. Creio que tê-las abertas me parece um convite amigável a entrar.

* Óquei. Penso em comprar um óculos escuros – coisa que nunca tive – mas prometo usá-lo só para não queimar a retina no ônibus.


**Foto: Caminito de Buenos Aires por Liza, a futura companheira de morada portenha.

8 comentários:

Liza Mello disse...

ai q honra! minha foto! :)
esse teu texto me lembra da Zezé, que uma vez deu aula de óculos escuros..lembra?

Carolina Tavaniello P. de Morais disse...

Não poder ver o olhar de alguém durante uma conversa me deixa aflita. Não dá pra decifrar o que a pessoa está pensando.

Samir Oliveira disse...

Os óculos não são bons para quem os vê. Mas quem os usa adquire o poderoso poder de ver sem ser visto. Eu, embora não fique bem em óculos nenhum, me deixo seduzir por essa fraqueza.

Adorei a última frase!

Anônimo disse...

Texto delicado. Como todos os teus!
Parabéns, Luana!
Sobre os óculos, tbm fico irritada ao falar com alguém que não os tira. Considero até falta de educação em alguns casos.
Beijos!

Rô Peixoto disse...

Três leves considerações a fazer:

Eu também odeio falar com pessoas usando óculos... sempre gostei de olho... acho que pelo fato dos meus estarem sempre enjaulados atrás de lentes.

Chico sempre toca o coração mais do que os ouvidos! Amo!

Adorei a foto! Contate a fotógrafa e dê-me os parabéns! hehe

Beijos!

Anônimo disse...

Putz! Baita texto.

Samir Oliveira disse...

Luana, e quanto a MINHA dose de literatura diária, hein?! Vamos lá, atualizando!!

Anônimo disse...

então... quando encontro alguém e começo a conversar, logo tipo o óculos de lentes negras e grandes. é como um ato de respeito, uma delicadeza, uma atenção. em vez de tirar o chapéu, tiro o óculos. mas não pense duas vezes: óculos de sol sempre. os oftalmos e este sol inclemente que o digam.