domingo, 4 de maio de 2008

O Show da Fé

Um texto não-gonzo...

Lá de cima, os grandes holofotes iludem os olhos. Fazem crer no verde reluzente como quadros de Monet. Os milhares que rodeiam a grande relva urbana nada sabem sobre arte impressionista, mas conhecem o valor daquele gramado milimetricamente dividido em dois tons. O espaço é sagrado. Sabem que no verde só os escolhidos pisam, e aguardam ansiosos os pés que ali tocarão.

Lá de baixo, olham para cima e sequer reparam no verde mal cuidado misturado ao marrom do barro malcheiroso. São milhares de pessoas que se esmagam na ponta dos pés, numa tentativa desumana de enxergar entre cabeças. Dali a pouco, alguém terá para si todos os olhos e ouvidos estendidos ao longo da orla, mas ninguém colocará tão cedo os pés no lugar sagrado. Apenas tentarão alcançá-lo com as mãos. É o Show da Fé.

No Beira-Rio, o show se chama Gauchão. Aqui, o inimigo vem das bandas serranas e traz consigo adoradores com os mesmos decibéis. Um oleleô, um vaitomanocu, algumas palavras fétidas e alguns Us soltos em hora inconscientemente combinada. Tudo sai das bocas com sotaques diferentes em cada lado da arquibancada. Tapo os ouvidos, finjo acreditar que o show está lá embaixo. Na arena, vinte e dois com ares estúpidos se degladiam pelo objeto rotundo do desejo.

Na beira do rio, a poucos metros na direção norte do mar vermelho, não se tem inimigos. A paz reina nos corações e as palavras são de amor. Aqui, são todos irmãos. Vêm apertados em ônibus lotados do litoral, da serra, da fronteira ou da terra de ninguém. Mas entre eles não há diferenças. São todos filhos de um mesmo pai. Todos crêem na mesma coisa, e não lhes importa se nisso há alguma razão.

Nas arquibancadas, a fé também vem do berço. É-se vermelho desde o batismo, sem direito a protestar. O quatro-três-três, o quadrado mágico, o losango fantástico, tudo pode dar errado, levá-los à segunda, terceira, quarta divisão. Ninguém, no entanto, sob qualquer resultado, ousa trocar a cor do manto sagrado. Se trocassem, o homem que se descabela num canto e solta gemidos seria o culpado. As pernas ameaçam invadir o campo numa tentativa inútil de salvar sua desgraçada tática. O jogo do técnico pode torná-lo o Cristo. Quando do contrário, é o Lúcifer logo demitido do paraíso.

Seres vestidos de azul são múmias que sussurram e distribuem o caminho para o céu. São papéis com listrinhas pretas, códigos de barras. Um deles pára na minha mão como milagre. Aqui, ao contrário do outro show, paga-se na saída. “Sejam acionistas de Deus”, clama um Pastor de voz galante. Tem pinta de artista de cinema para o qual ninguém protesta. Um Richard Gere capaz de seduzir homens e mulheres e de levá-los, literalmente, ao paraíso. Ele está sempre certo, não importa a tática. O pastor dá as ordens que lhe convém às ovelhas desgarradas. “Ponham a mão na cabeça”, confunde-as com macacos. “Sai, sai, sai!”, gritam com ele as mãos que espantam o diabo. Depois, elas se dirigem para o céu azul que os sobrepõe e cantam.

A cor do céu é a mesma do sangue, assim como dos mantos que mais da metade do estádio carrega no corpo. Alguns fiéis ainda reforçam a crença com panos quilométricos abertos de cima a baixo sobre as cabeças. Parecem não se importar com a pouca visibilidade dos santos de chuteira. Pulam sem parar. Agarram todas as mãos. Tornam impossível a qualquer um assistir ao jogo sem oscilações. É um sobe e desce sem qualquer temor dos muitos metros abaixo na arquibancada. É um depósito inabalável de fé.

A mistura de mãe-colorada-católica-não-praticante e pai-gremista-luterano-não-praticante resulta em filhos apáticos a qualquer fanatismo. Eu não tenho santos nas mãos, nem cara de compreensão. Sinto que me olham de revesgueio. Embora venha d’outro mundo, a energia causa um barato sem contra-indicações. Lembro do que dizem: gente de fé é gente que não faz terapia. Não custa tentar.

O espetáculo esportivo chega a ser bonito. Algo um tanto balé, um tanto batalha. Algo entre palco e arena. Notas regidas pelo maestro auto-escabelado atrás da linha branca. Decadente é o espetáculo do mar vermelho revoltoso, em completa desarmonia consigo mesmo. Mal sabem os vinte e dois sagrados que dividem o próprio show. Já faço parte dele, já grito, já vibro por uma religião que agora é minha. Sinto a vibração dúbia, que pode aumentar ou diminuir minha racionalidade.

O espetáculo parece irracional. As mãos abestalhadas batem no ritmo das canções divinas, nas quais onze entre dez palavras são o nome do Homem que rege tudo aquilo. Eles dançam como minhocas lânguidas e fazem coreografias toscas e sem sincronia. Uma tia gorda fecha os olhos e faz cara de choro logo em frente. As palmas das mãos viradas para o alto esperam a bênção prometida, ou talvez um milagre que caia do céu. Como ela, há muitos. É um concurso de teatro dramático. Quem mais sofrer pelo Homem será o vencedor.

Fingir sofrimento na frente do Homem pode convencer. Aqui, o Homem é chamado juiz, mas seu juízo não é unânime. É o deus de apenas um dos lados. Precisa decidir por qual deles quer ser odiado. O outro, que se dane.

Já no galante da voz sedutora, acredita-se de olhos fechados e braços pra cima. O candidato mais esperto sabe disso. Ele sobe ao palco e solta duas frases bem construídas e uma graça aos céus, que lhe garantem milhares de votos nas próximas eleições. Em volta do grande palco, as pernas cansadas tentam se manter, mas não se entregam. Braços e cabeças vão ao alto, cantam e gritam...

GOOOOLLL!!! brada o radialista concomitantemente ao uivo da torcida. Em uníssono, o homem se esquece de ser homem. A razão dá lugar ao pathos irracional. Não há mais ninguém em torno, não há mais prudência. Os olhos são seguidores incansáveis de um único ponto. No campo, as pernas correm paralelas. Enredam-se, costuram-se, esquecem-se do que rola em frente. Miram o inimigo, miram a bola. Dane-se a bola. Já sou algo entre homem e macaco, é o que pensam. O objetivo agora são canelas. Caem, esfolam-se, um rola, faz cara tragédia grega. A torcida vibra. O cartão amarelo sob a cabeça do juiz tem efeito imediato sobre o vasto léxico da torcida. Protestam, clamam, sofrem, é questão de honra.

É questão de classificação, de alcançar o objetivo. O lugar no céu depende do fanatismo desvairado. O ídolo sente a adoração e faz direitinho seu trabalho. Joga conforme o time, dança conforme a música. O placar marca sucesso. Agora só resta a final. O final. Aí, então, estarão todos no paraíso.

...e retardatário, já que o vermelho já está no paraíso.

10 comentários:

Samir Oliveira disse...

Não é gonzo, mas é quase uma poesia em prosa. Tu vais inventar um novo estilo Luana. Hunter Thompson, Joseph Mitchell e aquela turma toda que se cuidem!

Ah, e sim, teu futuro pode estar no futebol. Nunca se sabe..

Rô Peixoto disse...

Humm... meu paraíso tem tons de azul!

Carolina Tavaniello P. de Morais disse...

Caraca! da onde vem tamanha criatividade e agilidade com as palavras? oh God!

Anônimo disse...

Vou ler. Quero ler.
Mas vi que precisarei de tempo, o que não disponho agora...
Mais tarde eu volto.

beijos

Liza Mello disse...

"A mistura de mãe-colorada-católica-não-praticante e pai-gremista-luterano-não-praticante resulta em filhos apáticos a qualquer fanatismo"

A-DO-RO essa frase!

Anônimo disse...

Luzinha, como conseguiste unir o futebol ao impressionismo de Monet?
Amei o texto! Palavras, cores, sons. Tudo. Senti, ouvi e até me animei a ir a um jogo, só para ver encontrar o que acabei de ler. O único detalhe é que teria de trocar o vermelho e branco pelo tricolor.
Beijão querida!

Anônimo disse...

ps. faltou uma vírgula no comentário...hehehe

Condomínio Key West disse...

Grande texto, Luana. Gostei de ver o teu olhar sobre essa loucura chamada futebol. Será que dá pra filosofar sobre algo tão irracional? Dá pra tentar entender essa reprodução moderna dos Gladiadores indo à morte no Coliseu... Há algo de animalesco numa partida de futebol. É sem dúvida uma das poucas coisas que restou das origens brutas do homem caçador, guerreiro e conquistador. O que sobrou hoje para o homem moderno? Ser multifuncional. Trabalhar, estudar, pagar contas, estar bem informado, prover a família de conforto e bem-estar, ajudar a esposa com as tarefas da casa, cuidar dos filhos, afinal, hoje em dia as coias mudaram no nosso universo. Então, aonde, em que lugar, em que situação eu posso ser irracional e esquecer tudo? Onde eu poderei gritar todos os palavrões possíveis e não ser censurado por isso? Onde eu poderei xingar a mãe de uma autoridade (juíz) sem ser punido? Em que lugar eu poderei declarar minha paixão por meus ídolos sem cair no ridículo? Acho que é por aí. Eu acho. Futebol é paixão. Beijo!

Anônimo disse...

Realmente, é um texto não-gonzo.
Até porque, se tu continuar assim, tu nunca vai conseguir fazer um texto gonzo. (tu sabe do que eu tô falando e isso não é pejorativo)
Entretanto, é um baita texto - não só no tamanho. Eu, que vou a tudo que é jogo, consegui identificar vários personagens, além de mim mesmo através das tuas palavras.
Bem bacana, enfim. Gostei bastante. Parabéns mais uma vez!

beijão

Anônimo disse...

titio veio ver se tá tudo bem por aqui e reconheceu a obra... hehe...