quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Deliciosos Retratos

Adoro os cafés. E, de fato, não há algo em maior quantidade nessa cidade (finjamos, agora, que não há lixo nas calçadas). Não os cafés de beber, mas os de estar e de ver.

Sento-me em um, no qual descobri dois grandes prazeres. O primeiro, paezinhos de espinafre (aqui, consideremos os prazeres de uma vegetariana). O segundo, uma vitrine.

Em frente a uma grande janela eu olho para a rua. Seguindo a lógica da perspectiva, o objeto em exposição seria eu. Mas não. São eles. Porque eu observo. Eles são só eles caminhando na calçada.

Passam muitos perfis e alguns rostos de frente (e pensemos que eles seguem a lógica do objeto em exposição).

Passa um alemão que guarda a mão no bolso peitoral. Passa uma brasileira que fala sozinha ou talvez cante uma canção. Passa um gordo que bebe numa garrafa inversamente proporcional a si. Passa, passa, passa.

Como o tempo, passam rápido e não me dão tempo.

Jovens de branco com pinta de medicina. Um senhor de branco pintado de tinta. Passam tortos e direitos (porque os vejo de lado). Passam ritmos silenciosos e silêncios misteriosos.

Passam brabos, alegres, apáticos. Curiosos da minha vitrine.

Todos sonorizados pela música e pelas vozes daqui de dentro. E deliciados como café. Ou, melhor, como pães de espinafre.

domingo, 19 de outubro de 2008

Embaixadoras

Tenemos un mundo. Eu diria a elas. Embora elas já saibam, e eu não precisasse dizer. Mas seria bom dizer-lhes que sim, que somos um mundo. E eu diria em espanhol porque, já que o somos, cada uma fala seu idioma. Em muitos sentidos. O que nos une é a tentativa e o interesse. A tentativa de falar. O interesse em ouvir.

Somos mexicanas, canadenses, alemãs. Somos três vezes brasileiras. Falamos francês, alemão, português. A unidade espanhol e o salvador inglês. Falamos o que em qualquer país não seria entendido. O que, após três meses, só aqui se fala.

Somos porque somos. Agora somos todas tudo. E nós, quando tudo aqui cessar, continuaremos multiétnicas. E poliglotas. Sentiremos falta da guacamole como nosso prato típico. Sentirão falta da feijoada. Sentiremos saudade.

Temos mais diferenças que uma língua e uma cultura. Temos mais semelhanças que a busca incansável que nos uniu aqui. Temos, talvez, um sonho insano para um futuro incerto. E, algumas, uma carta na manga para realizá-lo.

Mas eu diria, por enquanto, que o que temos já é o bastante.

Afinal, em qualquer lugar onde estivéssemos, eu diria o mesmo a elas.

domingo, 5 de outubro de 2008

Sonidos Subterráneos

Bip-bip-biiip

Bip-bip-biiip

As catracas rodam incansáveis e os corpos correm incontroláveis.

Milhares de corpos. Milhares de pés. Milhares de mãos que passam os cartões de acesso ao mundo subterrâneo da cidade. Milhares de bip-bip-bip por dia.

Milhares de sons.

As linhas de metrô da cidade, que na literalidade argentina é chamado Subte, são a reprodução subterrânea da cidade dos contrastes de cores, de gente, de poesia. De barulho. Dos sons fugazes das bocas, dos gritos que tentam superar o som esgaçante dos trilhos do trem.

Mas as linhas coloridas de letras do alfabeto também escrevem composições com mais musicalidade. O subte tem trilha sonora. Os túneis são roteiros abstratos sonorizados por música clássica, rap, andina. Qualquer ritmo em versão argentina.

Nos corredores que ligam estações, os fones saem das orelhas para ouvir a milésima sinfonia do subte. Mais que o respeito, como um chapéu que sai da cabeça, é a admiração a quem dá vida às passagens frias e segundos de sensibilidade aos ouvidos apressados. Os vinte e poucos anos de homens e mulheres carregam violinos, violões e rostos de prazer, embora o palco seja baixo e escuro; o público e o salário, incertos.

Os corpos, quando novamente irracionais – ou racionais? – se esmagam para encontrar vago o assento onde farão viagem.

Dentro do vagão, violão e voz desafinados incomodam e aconchegam. Distraem a monotonia. Para as vidas desafinadas, qualquer nota no compasso certo é boa melodia.

Numa estação, o trem pára e fica. Aguarda mais tempo que o combinado, aproveitando a música que silencia o lugar. Um careca toca guitarra e canta “Stand by Me”, enquanto os olhos esperam, esquecidos da pressa. Dentro e fora do trem, há um público fiel nos poucos segundos dessa união de interesses.

O alarme soa alto e apressa quem sobrou. As portas prestes a fechar desesperam.

Ao pé da escada, como recepção a quem chega, “More than Words” traduz o que ele sente. Assim como os demais que vivem para musicalizar a vida passageira, é mais que palavras que o jovem atirado com o violão quer dizer. Está ali, assim como tantos, com uma tarefa difícil em meio ao caos sonoro.

Ali, a tarefa é mais que o cantar. É o encantar das vidas monótonas, o sensibilizar das vidas mecânicas. Das máquinas que vão e vêm nos imutáveis trilhos do trem.


***

O subte portenho é infinita fonte de observação e inspiração. Logo, promete ser assunto constante para divagação.


terça-feira, 23 de setembro de 2008

Contos de Primavera

Há alguns anos, quando eu não imaginava que existia algo além de uma terra longínqua chamada Porto Alegre, eu acreditava que flores caiam do céu. Assim mesmo. Flores pequeninas, bonitas como gérberas e rosas, caíam girando como uma roda de carroça a partir do dia 21 de setembro. Vinha daí meu encanto pela primavera.

Se me perguntassem minha estação preferida, eu não balbuciava. Não pensava nos ventos fortes, na chuva, no resquícios de frio dos setembros. Só pensava nas flores que cairiam sem parar.

Não sei por que, por tanto tempo, em acreditei nisso. Afinal, ano após ano, setembro após setembro, via tantas flores como neve caírem na minha cabeça naquele país tropical.

Quiçá uma analogia inconsciente ao despertar da vida, à renovação dos ares. Quiçá inocência. Qualquer hipótese que fosse, a perdi. Mas não quando percebi que as flores não caiam, e sim quando descobri em quão feia algumas pessoas transformaram minha ilusão.

Quando descobri que existia Buenos Aires, pensei que minhas constatações infantis estavam certas. Aqui, a entrada da primavera coincide com o Dia do Estudante e é uma data celebrada. Era o dia mais esperado por mim desde que cheguei, porque muitos bonaerenses entraram num acordo cruel e me narraram como são lindas as primeiras horas da estação nos parques da cidade. As pessoas dão flores às outras e sorriem. Os estudantes se reúnem e festejam esse dia em que são liberados das aulas. Foi assim que me iludiram.

De fato se reúnem. Mas para transformar primavera em inverno (ou inferno). Nos belos bosques de Palermo se vê muita gente, que abre as mãos para soltar lixo, e não para dar flores. Os jovens não sorriem, mas riem. Riem uns dos outros. Gritam. Correm.

E as flores, definitivamente, não caem do céu.

A primavera aqui é feia.

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Quando tento antecipar a entrada da primavera, ainda carregando minha ilusão, e me sento no Jardim Botânico da cidade, um moço se dirige a mim. Estende na minha frente um longo pedaço de arame e começa a enroscar. Cara de argentino não tem. O arame lhe denuncia.

Hola. Voy a hacerte una estrella porque las estrellas tienen luz propia — entrega-me o arame que se esforça em parecer uma estrela. — Y ahora te mostro mi trabajo y então si te gustar alguno te cuento un cuento.

O sotaque e os erros também. Sim, é brasileiro. Brasileiro que enrosca arame, faz-los brincos e vende. Esse, ainda encena e narra um conto se eu comprar sua arte.

Quero ouvi-lo.

Agora, ao contrário de antes, é o português que tropeça no espanhol. Estou mais atenta à forma da fala que ao conteúdo. E fala como um brasileiro que entorta arame na beira da praia.

Uma terra onde duendes e fadas fazem festas nas quais tudo é mais ou menos a trindade sexo, drogas e rock’n’roll. Então, um urso aparece — porque, afinal, ursos têm relações profundas com fadas – e lhes faz chá de cogumelos. Nessas comemorações não só pela primavera, as fadas se portam muito mal. E, embora isso tudo seja tão metafórico quanto as flores que caem do céu, fez mal às minhas ilusões primaveris.

— Agora você tem que me prometer uma coisa — diz o carioca. — que vai se portar muito mal. Mas isso, só se for pra passar bem.

Hã?

Óquei. É melhor concordar antes que meu saco de ilusões se esvazie por completo.

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A primavera aqui é feia. E desilude.

E, para contrariar Quintana, nada disso tem-me causado uma extraordinária sensação de alívio.

sábado, 30 de agosto de 2008

“Saudade é um clichê”...

... eu disse pro Samir.

Assim, me dei conta de que não escrevo porque meus pensamentos são agora clichês. Porque tudo o que penso é saudade.

O Samir contestou que não. Que saudade é sentimento. Sentimento clichê, porque todo mundo tem, afinal. Coisa clichê é coisa que todo mundo tem, que todo mundo sente, que todo mundo diz.

Bom, ao menos falantes losófonos são clichês, os únicos que sentem saudade nessa superfície tão grande e tão propensa ao sentimento. Os outros sentem falta, eu disse. O que nem de perto é o mesmo.

“E tu, sente o quê?”. Eu sinto saudade. Saudade grande, daquela bem brasileira. Porque, embora eu já confunda um pouco as língua ibéricas, em espanhol palavra nenhuma consegue traduzir o que sinto.

E, sim. Pra que tudo faça sentido, esse texto é clichê. Afinal, eu sinto saudade.


... e foi assim:

Luana diz:
só penso clichês ultimamente

Luana diz:
q coisa horrível

Luana diz:
o q eu faço?

Samir diz:
ai luana, tbm não há drama

Samir diz:
a vida nao deixa de ser um grande clichê

Luana diz:
não é drama

Luana diz:
é q to pensando em como começar a matéria

Luana diz:
só penso clichês

Luana diz:
não atualizo o blog pq só penso clichês

Luana diz:
acho q é a saudade d casa

Luana diz:
saudade é clichê

Samir diz:
ahahaha

Samir diz:
saudade é sentimento

Luana diz:
sentimento clichê

Luana diz:
pq todo mundo tem

Luana diz:
e isso dá texto

Samir diz:
mas só brasileiro sabe falar direito!

Luana diz:
só brasileiro sente saudade

Samir diz:
ohhh

Samir diz:
q amor

Luana diz:
é... falta e saudade não é a mesma coisa

Samir diz:
nao mesmo

Samir diz:
tu sente o que?

Luana diz:
saudade, ué

Luana diz:
sou brasileira

Luana diz:
embora já confunda um pouco o português com o espanhol

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Amanhecendo em Buenos Aires

O sol apareceu, embora eu só o tenha visto horas depois.

Quando desembarco na rua pela porta bordô da Calle Constitución, os pés parecem tocar num oceano gélido e o corpo adentra aquilo que se sabe ser dia, mas que ainda não amanheceu. São sete da manhã. E me vou melancólida, fria e com frio.

Quando enfim amanheceu, e meu corpo estava dentro de salas aquecidas artificialmente da Universidade, o sol pôs-se lá fora. Descobri que não era forte concorrente ao frio do inverno, mas, embora não aquecesse tanto o corpo, esquentou surpreendentemente a alma. Porque o sol tem dessas coisas, me parece. Um incrível sei-lá-o-quê que merece odes e devoções.

Durante, pelo menos, 16 dias, o sol deve ter somado não mais que ligeiras horas de exibição. E eu, contrariando a lógica de quem faz as escolhas que fiz, somei não mais que alguns poucos minutos de exaltação. Aquela vontade talvez se tenha misturado à saudade e ao medo e me senti, por 16 dias, um dia fechado. Sem sol.

Quando senti sob o pé a superfície mais quente e o dia passou a ser, enfim, dia, comecei a recuperar o fôlego. Começar já é um bom começo, afinal. A respiração se aquietou enquanto o corpo fez o exato inverso, embora eu tenha demorado a perceber.

O relógio biológico desajustado me fez ficar em casa no primeiro sol da minha nova vida. Mas aqui dentro está tudo bem. Tenho sol na minha janela e parece estar tudo mais claro.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Pequeno Tributo à Esperança

Hoje o dia nasceu mais triste pra mim. Peço desculpas àqueles que há tempos me pedem novos escritos e esperam notícias de uma aventura em terras portenhas. Mas eu hoje acordei triste.

Há anos quase incontáveis, quando Buenos Aires sequer pensava em acolher-me, nasceu Esperança. Com ela, também nasceram admiradores. Novas vidas que brotaram a partir de novos pensamentos. Uma perfeita mistura de idéias revolucionárias e sentimentos conservadores. Porque Esperança era, até a manhã de hoje, sinônimo de vanguarda, de alegria e de brilhantismo. Quem conheceu Esperança Keil Fuentefria, há-de sempre recordar qualidades.

Mesmo com as adversidades da vida – que lhe foram muitas – não perdeu a alegria e a claridade da mente. Até a última semana de vida (quando a vi pela última vez) bem sabia o que queria e o que dizia, embora estivesse com o corpo magro ainda mais magro, e os olhos claros talvez mais cansados de viver. Não gostava de “gente velha”, e talvez isso lhe tenha salvado de envelhecer. Porque Esperança nunca foi velha, a despeito de seus cem anos.

Meu dia amanheceu triste porque descobri que não mais a farei feliz com o cartão postal que lhe enviaria, para lembrar-lhe das ruas portenhas de que tanto gostava. Fiquei triste porque não ouvirei suas incansáveis histórias e seus agradecimentos quase chorosos às visitas que recebia. Chorei por descobrir, assim por um baque, que as coisas boas não são eternas.

Ao mesmo tempo, fiquei feliz porque sei que ela se foi feliz, embora o que é Esperança tenha ficado e ficará sempre entre os que um dia a conheceram. Pois, como disse minha mãe para me consolar (já que não podia me abraçar), “ela cumpriu muito bem a sua missão e deixou em nós uma parte muito boa dela”.

Esperança. Hoje, nos dias em que essa palavra me é cada vez mais presente, sinto que não a perdi. Continuo a acreditar que é a última que se vai, embora ainda creia que seu corpo deveria ser imortal, que suas palavras deveriam ser eternamente ouvidas, que a Esperança centenária, assim como o sentimento homônimo, não deveria ter fim.

Portanto, só o que posso dizer aos amigos que esperam por notícias minhas é: nessa hora, eu queria estar em casa.